segunda-feira, 21 de novembro de 2016

Fez-se um homem



Meados do século passado. Era sua primeira audiência no interior de outro Estado. Humilde, algo tímido, mas brioso, embora talvez nem tivesse ciência disso. Ressentia-se, jovem ainda, da segurança concedida pela experiência, mas faltava-lhe, também, a insegurança dos incompetentes. Nunca saíra da Capital, o que dizer-se exercer a recente advocacia no então violento sertão do vizinho Pernambuco. Pior: na Comarca daquele Juiz, conhecido por sua rudeza, e naquele município de maus contados ainda piores. A péssima fama de que desfrutava o Dr. Matoso já ultrapassara as fronteiras do minúsculo Exu, com este até rivalizando. Outrossim, a tensão há dias grudara-se a Aurino, agravando-se os sintomas que o afligiam — dela denunciadores — por toda a madrugada do fatídico dia.

Foram intermináveis idas ao banheiro; temeu desfalecer. Não fosse sua esposa, a enchê-lo de conforto e coragem, aliados ao milagroso chá caseiro, interruptor das mais rebeldes diarréias, não se sabe o que seria do promissor patrono de causas jurídicas.



Passados os maus bocados, banhado e de terno escuro, apesar do calor — tentativa de impor respeito, já que a cara imberbe não ajudava —, tomou um café puro, beijou a fronte da filhinha que dormia, despediu-se da mulher e partiu, montado no fusca emprestado do amigo, azucrinado por suas aperreadas recomendações para por ele zelar, evitando os buracos da estrada, as pedras atiradas pelas rodas dos caminhões, etc.

Vencidas a estragada rodovia e a longa distância, encaminhou-se imediatamente ao foro municipal de Exu —facilmente localizado, em face das diminutas dimensões da Comarca —, para não correr risco de atrasar-se, inobstante distassem ainda duas horas da aprazada. Lá chegando, acomodou o fusca numa das duas únicas vagas cobertas e perfilou-se na sala de audiências, aguardando o momento tão esperado.

Faltando cerca de quinze minutos para a hora designada, ouve-se um buzinar nervoso, estridente mesmo, do lado de fora do prédio. Rapidamente ingressa à sala um serventuário do foro, em pânico, dirige-se a Aurino e solicita-lhe promovesse a retirada do automóvel da vaga onde estacionara, pois privativa do Juiz!

Pronto! Era só o que faltava! Começara bem! — Fui estacionar logo na vaga do dito cujo — resmungara, enquanto corria a desfazer o mau passo dado, dando adeus à breve tranqüilidade que desfrutara.

— Quem o senhor pensa que é? Não vê que as vagas cobertas são destinadas aos veículos das autoridades? Sou o Juiz da Comarca, ora! — disse o “dono” do espaço, ríspido a doer nos ouvidos, esquecendo-se (esquecendo-se?) de que jamais houve sinalização nesse sentido naquele disputado e sombreado recanto.

Rogando as escusas de Sua Excelência, cuidou nosso herói de dar marcha a ré no veículo e estacionar em outro local, debaixo do sol mesmo, não sem antes quase pôr a pique a caixa de marcha do carro, devido ao nervosismo de que estava acometido, no fim das contas pagando todos os inocentes: ele — Aurino —, o veículo, e seu desafortunado proprietário, que por sinal nunca veio a saber do incidente da engrenagem.

Novamente na fatídica saleta, suando em bicas, cuidou Aurino— embora a contragosto —, junto com a assistência, de levantar-se à entrada do meritíssimo, para dar-se início à audiência: não entendia correta essa atitude, que lhe parecia menos de respeito e mais de submissão. Mas cadê coragem para manter-se sentado?

O juiz, de qualquer modo — e era visível — já auferira nítida (e gratuita) antipatia pelo nosso causídico, que aliada à sua natural estupidez estava a prenunciar-lhe maus momentos. Assim é que, iniciada a audiência e chegado o momento de Aurino inquirir o depoente — no direito brasileiro, diferentemente do norte-americano, a pergunta é feita ao depoente através do juiz, que então a transmite àquele —, eis que o novel advogado, após formulá-la, obteve a inusitada e desmedida resposta do magistrado:

— Indefiro a pergunta! — esbravejou. — Requeiro, nesse caso, sejam consignados em ata a pergunta e seu indeferimento. — Pedido também indeferido! — assinalou Matoso, aumentando a voz. Aquilo não estava acontecendo, queria crer Aurino... À indagação seguinte, saiu-se o juiz com resposta semelhante:

— A pergunta é capciosa! Está também indeferida! Caso o senhor não se comporte e continue a pretender tumultuar a audiência com tal procedimento serei forçado a expulsá-lo! — castigou o togado, quase aos berros. — E não me peça para consignar, em ata ou onde for! — acrescentou, já gritando. Breve suspense...

— Com a devida vênia — começou, num hercúleo esforço para conter o corpo todo, que teimava em tremer, avexado —, mas temos, eu e meu constituinte, o direito à consignação requerida. A mantença dessa negativa denotará parcialidade de Vossa Excelência, o que lhe é proibido, obstáculo ao exercício profissional da advocacia e escancarado abuso de poder, para dizer o mínimo. Outrossim, volto a rogar: retrate-se, Excelência, determinando a inserção em ata das perguntas e dos respectivos indeferimentos havidos.

— Oh! — foi o clamor ouvido, seguido do silêncio. Respirações suspensas novamente. Via-se o estupor na face dos presentes. Estava frito. Agora não escaparia. Não sabe como teve coragem para dizer tudo aquilo. Sequer como o disse. Quando se apercebeu, já o tinha. Era tarde, mas a rebordosa, porém, não tardou.

— O senhor é um insolente! Não defiro nada! Aqui quem manda sou eu! Retire-se da sala, já! O senhor sabe com quem está falando?! Eu sou o Dr. Matoso, de Exu! —urrava o magistrado, dedo em riste.

Aurino sentiu faltar-lhe os pés, pernas, tudo. A cabeça girava. Permaneciam suspensos os suspiros e o zum zum zum dos ouvintes, que silenciosamente, olhos esbugalhados e tensos, não queriam perder um só ato daquela contenda inesperada. Aurino não enxergava ninguém. E nem uma só voz se levantou em seu favor. Sentiu-se só, humilhado, com medo. Queria não estar ali, fosse tudo um pesadelo... Sentiu vergonha de si mesmo.

Aqueles brevíssimos instantes de agora pareciam uma eternidade. Foi quando lhe veio à mente a imagem da mulher dedicada e de sua filha, criança ainda... Eram a sua família. E por essas artimanhas aparentemente milagrosas da vida, viu-se de repente tomado por uma coragem irrefreável, por uma altivez nunca sentida. Em poucos segundos percebeu-se ressurgindo das cinzas, assomando do fundo do poço onde se metera. O medo fizera-se coragem; a humilhação, amor próprio. E levantando-se, falou, com firmeza e tom inéditos, dedo em riste apontado para o agressor, olhos na mesma direção, implacáveis e destemidos:

— E eu sou Aurino! Simplesmente Aurino, das Alagoas! E não lhe tenho medo, nem à sua infelicidade. A lei determina tratamento recíproco entre juiz e advogado, mútuos respeito e urbanidade. Não há hierarquia entre ambos! Assim, a partir de agora o senhor será tratado dessa forma: com a mais rigorosa reciprocidade. Ofenda-me, e será incontinenti ofendido! Levante a voz, e seus ouvidos suportarão os mais altos tons da minha! E não sairei da sala. Saia o senhor, que não honra a toga que veste. Daqui, só saio preso!

Ao silêncio ensurdecedor, seguiu-se a vida, aos poucos. Os rostos transmudavam-se num misto de estupefação e satisfação com aquele forasteiro que fez o que ninguém jamais ousou fazer. Voltou o zum zum zum. Saiu o juiz, para não mais voltar. E naquela tarde, em Exu, fez-se um advogado. Mais: fez-se um Homem.
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Escrito em abr.2006
Conto publicado no jornal Gazeta de Alagoas, Caderno Saber, de 01/4/2006
Foto em http://textosdacriscampos.blogspot.com.br/

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