domingo, 27 de julho de 2008

Os macacões de gari

Crônica
Pediu-me, o editor*, uma crônica cujo tema versasse sobre nós, advogados. Sim, por causa do 11 de agosto. Apesar da pobreza mental criativa terrível em que me encontrava — um deserto, a minha mente —, como negar-lhe o que me pediu tão fidalgamente? E lá fui, ops!, vim.

Assim..., pensando, pensando, pus-me a refletir sobre nossa fama, nossa prática, nossas relações, ...nossas vestes. Naturalmente que as palavras a seguir alinhavadas absolutamente não querem significar que saí do estado (de aridez) em que me encontro, apenas porque agora tenho um assunto. Tanto que, depois de ler-me, você certamente pensará, impiedosamente, sobre este escriba: “ainda bem que ele sabe disso.” Mas ao menos seja complacente, por ora, e se as tome como abobrinhas aqui plantadas e imediatamente colhidas, antes, pois, e felizmente, de amadurecidas.

Pois bem, alguns dizem que advogados são metidos, arrogantes e sacanas (ops! de novo; foi mal!), quando não desonestos (argh!). Aqui, queira considerar também nessa seara adjetiva, digamos, desconfortável, os demais mais conhecidos do público leigo: os promotores e os juízes. A minha robusta tese é a de que esses caras (excluí-me, perceberam?) assim o são, em bom tamanho por causa das vestimentas que usam.

Verdade. Acho que nossas vestes dão guarida considerável a essas nada altaneiras impressões. Quando não as escudam. Sério! Pode reparar: um sujeito qualquer, quando põe um peste dum terno, pra tender a se achar o bam-bam-bam não anda duas esquinas. Assumiu algum cargo, ganhou poder, vixe Maria!, aí é que fica besta mesmo. Pois conosco, operadores do direito potências, é muito, muito pior. Se for juiz?, bubônica, o troço entorta de vez (sem trocadilho).

Daí porque tive a idéia, graças ao editor — que, como já alertado alhures, foi quem me pediu a crônica (a culpa é toda dele, pois) —, de lançar a sensacional campanha pela adoção dos macacões de gari como veste obrigatória no meio jurídico. Claro que, a par disto, os garis — e todos os mais humildes serviçais do país — teriam o direito de usar nossas então vestes, que seriam, obrigatoriamente, inapelavelmente fornecidas pelos patrões.

Assim, pensei que cada um dos garbosos operadores do direito teria seu macacão de uma cor, para diferençá-los um do outro. Tipo: a do advogado, vermelha — não abro mão do vermelho para advogado, primeiro porque torço pelo CRB (aliás, tá mal que só na Série B do Campeonato Brasileiro) e, segundo, porque sendo advogado, sou também o autor da campanha, e pronto —; a do juiz, branca (linda!, agora, com essa busca ferrenha pela conciliação nas lides, significaria a paz) —; e o promotor, preta (por motivos óbvios, já que seu objetivo é tornar o mais negro possível o futuro do sujeito a quem vai acusar, mais das vezes negro também, além de pobre fedendo, tal qual seu presente).

Logo visualizei em minha mente todo mundo igualzinho, metido em seus respectivos macacões de gari. Pus-me a sonhar com a simplicidade em suas atitudes, em suas falas, em seus gestos, se não proporcionada ao menos facilitada por tão simplórias vestes. O advogado trabalhista, por exemplo, no seu engomado macacão vermelho, relacionando-se, humildemente, com seu cliente empregado, o elegantíssimo auxiliar de limpeza, no seu alinhado terno de linho azul. E o juiz? Ah!, o juiz..., veria, finalmente, os advogados e promotores como iguais a si, tal qual, aliás, sempre dispôs a lei. Estes, aliás, atuariam com mais técnica e menos teatro, já que não teriam mais o terno e a toga a conferir-lhes o falso ar shakspeariano. Ah!, ia esquecendo: naturalmente, toga, nem pensar. Proibido o uso de qualquer veste talar!

Estava me divertindo com a situação, e até orgulhoso por haver contribuído para um mundo mais igualitário, quando em meus devaneios imaginativos deparei-me com uma passeata de protesto violento que estacionara na porta da minha casa — alguns anos após a adoção obrigatória das novas vestes em todo o país —, gritando palavras de ordem, do tipo: queremos a volta dos ternos e das togas!; pelo fim da obrigatoriedade do uso de macacões de gari!; fora, André Falcão!, enquanto com uma das mãos jogavam os já encardidos uniformes na minha varanda e, com a outra, agitavam seus códigos e compêndios legislativos. A essa leva de inconformados se somaria uma multidão de sujeitos metidos em ternos outrora lindos, hoje sujos, rasgados e empoeirados, portando vassouras, enxadas, réplicas de bomba de combustível, pás de juntar cimento e por aí afora, a exigir a volta dos seus macacões rudimentares. Eu, a esta altura, escondido atrás da cortina da sala — e sou lá bobo de botar a cara pra fora numa hora dessas? —, estarrecido com aquele espetáculo de insensibilidade humana.

Os formadores de opinião culpavam-me pelo péssimo nível dos juízes, advogados e promotores formados após a novel lei, além de pela revoada dos antigos para outras profissões. Os piores alunos das faculdades eram os de direito; as piores faculdades já eram as de direito. Não havia mais bons professores. A própria existência da profissão estava por um fio. Nunca o direito fora tão torto. Sem o atrativo do glamour proporcionado pelas vestes, o desinteresse pelas profissões jurídicas se instalara com ares de definitividade. Ninguém mais queria usar os macacões de gari.

Tanta foi a pressão que poucos dias depois a lei fora revogada. A turma da vassoura tomou todas, feliz feito pinto no lixo. Juízes, advogados e promotores, por sua vez, novamente investidos e vestidos em seus ternos e togas, comemoravam abraçando-se, pulando e chorando pela boa nova. O país estava em festa.

Manhã seguinte, uma espessa nuvem vermelha, preta e branca cobria os céus de todo a nação. Eram os macacões de gari que queimavam para sempre em fogueiras espalhadas pelos foros das cidades.
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(*) Mário Goulart, do Boletim da ADVOCEF - Associação Nacional dos Advogados da Caixa Econômica Federal
Também publicado no jornal Gazeta de Alagoas, Caderno Saber, de 02/08/2008

domingo, 6 de julho de 2008

Senhor

Crônica
Sim, senhor. Não, senhor. Pois não, senhor. Obrigado, senhor. Dá licença, senhor? Por aqui, senhor. Por ali, senhor. Fique à vontade, senhor. Já pediu, senhor? Mais alguma coisa, senhor? O que deseja para beber, senhor? Seu troco, senhor. Seu sanduíche, senhor. Sua bebida, senhor. Seu ingresso, senhor. Siga a fileira da direita, senhor; lá se encontra sua cadeira; bom espetáculo, senhor. Açúcar ou adoçante, senhor? Copo com gelo e limão, senhor? Gosta de laranja no guaraná, senhor? Seu copo, apenas com gelo, senhor. A cerveja está gelada, senhor? Veja se o caldinho de feijão está quente, do seu agrado, senhor. Mesa pra quantos, senhor? Vem mais alguém, senhor? Posso retirar os pratos, senhor? Gostaria de uma sobremesa, senhor? Cafezinho, senhor? Dois, senhor? Está satisfeito, senhor? Tem que digitar a senha no balcão, senhor. Aceitamos todos os cartões, senhor. Deixe-me guardar o seu casaco, senhor. Qual o andar, senhor? Pode aguardar seu carro na recepção, senhor. O serviço está pronto, senhor. Boa sorte, senhor! Boa audiência, senhor. Por que não dá aula em alguma faculdade, senhor? Por que não escreve um livro, senhor? Nunca mais escreveu, hein, senhor? Vai à minha despedida do estágio, senhor? Posso revezar o aparelho (de musculação) com o senhor? Fique à vontade, farei bicicleta, pode usar a esteira, senhor. Ei, moço (única hora em que o senhor é esquecido), não é fisioterapia, não; é musculação! Vamos aumentar esses pesos! Tá mais magro, senhor. Deu uma engordadinha, né, senhor? hehehe Ei!, por favor, desculpe, a sua conta, senhor. “Putz! Desculpe, eu! Quanto foi, mesmo?” (no Iguatemi, já descendo distraidamente a escada rolante, sem pagar). Boa viagem, senhor. Bom passeio, senhor. Boa aula, senhor. Bom cinema, senhor. Bom dia, senhor. Boa tarde, senhor. Boa noite, senhor. Hoje tem um joguinho (do CRB), né, senhor? Precisa dar um jeito no CRB, senhor! Por que não leva a psicóloga pro CRB, senhor? CRB ganhou; tá feliz, hein, senhor? Li sua crônica, senhor. Parabéns, senhor. Boas férias, senhor. Feliz aniversário, senhor! Feliz Natal, senhor! Feliz Ano-novo, senhor! Feliz Páscoa, senhor! Feliz Dia dos Pais, senhor! Boa viagem, senhor! Gostei da barba, senhor. Melhor sem barba, senhor. Volta quando, senhor? Essa gravata é a sua cara, senhor. Tá um preço ótimo, senhor. Filhos lindos, senhor. Senhor, senhor, senhor...
(...)
Envelhece,não, né, doutor? Sempre essa cara de menino! “Vai te danar!”
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Escrito em jun/2008
Também publicado no jornal Gazeta de Alagoas, Caderno Saber, em 05/07/2008, e no site BrasilWiki!