Não se atrevia a mirá-los.
A incredulidade em seus rostos misturava-se com a dor e o sofrimento. Também
não lhe dirigiam o olhar. Não sabia o porquê, mas tampouco perguntava. Ao
redor, aquela atmosfera modorrenta e fúnebre, típica dos cemitérios. Sentia-se
culpado pela brincadeira, mas, afinal, fora compartilhada por todos. Já bastava
a culpa que sentiu quando foi a sua vez. Preferiu, assim, adotar o silêncio
respeitoso, solidarizando-se com a dor que verificava sentiam, ainda que não a
sentisse.
Eram
cinco amigos em férias. Costumavam sentar num banco lá na calçada da antiga
Robert Kennedy, praia de Pajuçara, perto de onde havia o bar Ipaneminha.
Papeavam, paqueravam as garotas que passavam, essas coisas.
A nova brincadeira: não
poderiam saudar qualquer um que passasse de carro. Bastava ser alguém a quem
normalmente o fariam. Teriam de encarar o infeliz. Proibido fingir que não o
tinham visto. Olhá-lo, se possível dentro dos olhos, para não lhe deixar dúvida
que fora visto e propositadamente não cumprimentado.
Veio um carro. Olharam
fixa e seriamente para os passageiros. Após, gargalhada. Afinal, eram os pais
da recente namorada de um deles. Vexame. Nenhuma intimidade com os futuros
sogros. Assim passaram a tarde, sempre com um, ao menos, servindo ao deleite
dos demais. Vinham professores da escola, parentes, paqueras e por aí afora.
Quem tivesse o azar de defrontar-se com um conhecido, que cuidasse, depois, de
desfazer o mal-feito.
O último carro. Dentro,
Manoel, vulgo Lapada, cara violento, fama de brigão e arruaceiro. Sobrou para
Sílvio, pois era quem o conhecia, mas só de oi. Engoliu em seco. Azar! Quis
desistir. Até então só se divertira. Sua hora, porém, havia chegado. Podia
imaginar a ira do Lapada. Na melhor das hipóteses, e rezava por ela, nunca mais
lhe dirigiria um aceno. As risadas, via-as contidas na face dos amigos, prontas
para o momento de desaguarem. O carro, perigosamente mais perto. Apegou-se à
esperança, última, de que Lapada não os visse. Nada. Como todos, olhou,
detendo-se em Sílvio. Acenou. Até sorriu um pouco. Sílvio, obediente às regras,
limitou-se a encará-lo, sério. Morto de medo, não movia um só músculo. O
sorriso da vítima logo se desvaneceu. Seguiu-se-lhe um ar meio sem graça, logo
transformado em ira. Estava frito. Parou o carro, abrindo a porta com
violência. Percebia-se-o vivamente transtornado. Iniciou a travessia da
avenida. Sequer olhara para os lados. Passos firmes. Cara vermelha, veias a
estourar. A última coisa de que Sílvio se recorda foi do líquido abundante e quente
escorrendo por suas pernas. Mais, não lembrava.
Por que não falavam com
ele? Afinal, não fora o único culpado pela brincadeira. Será que, apesar do
medo que sentira, da urina incontida — cujo cheiro ainda sentia no ar —, batera
no Lapada num arroubo de coragem? Matara-o? Ou fora atropelado e morto? Claro!
Daí o cemitério! Não lembrava porque deve ter ficado em estado de choque.
Levantaram-se para irem à
sala do velório. Sílvio os imitou. O caixão aproximava-se, na medida em que a
distância entre eles era vencida. Sentiu náuseas. Andava lentamente, um pouco
atrás. Sentia que participara diretamente da razão pela qual estavam ali. Mas
temia constatar ser o responsável. Manteve-se a uma distância maior. Vira-os
debruçar-se sobre o caixão. Choravam. Aproximou-se mais. Olhou para o defunto.
Sentiu-se desmaiar. Não podia acreditar. Era ele, Sílvio, no caixão! Infarto,
alguém dissera. Morrera na hora. De medo do Lapada.
__________
Escrito em jun.2006
Conto integrante da Antologia “A Ponte” (selecionada na III
Olimpíada Cultural 500 Anos da Língua Portuguesa no Brasil – 2° Sem/2006) e
publicado no jornal Gazeta de Alagoas, Caderno “Saber”, de 01/07/2006
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