segunda-feira, 21 de novembro de 2016

Brincadeira na praia

Não se atrevia a mirá-los. A incredulidade em seus rostos misturava-se com a dor e o sofrimento. Também não lhe dirigiam o olhar. Não sabia o porquê, mas tampouco perguntava. Ao redor, aquela atmosfera modorrenta e fúnebre, típica dos cemitérios. Sentia-se culpado pela brincadeira, mas, afinal, fora compartilhada por todos. Já bastava a culpa que sentiu quando foi a sua vez. Preferiu, assim, adotar o silêncio respeitoso, solidarizando-se com a dor que verificava sentiam, ainda que não a sentisse.

Eram cinco amigos em férias. Costumavam sentar num banco lá na calçada da antiga Robert Kennedy, praia de Pajuçara, perto de onde havia o bar Ipaneminha. Papeavam, paqueravam as garotas que passavam, essas coisas.

A nova brincadeira: não poderiam saudar qualquer um que passasse de carro. Bastava ser alguém a quem normalmente o fariam. Teriam de encarar o infeliz. Proibido fingir que não o tinham visto. Olhá-lo, se possível dentro dos olhos, para não lhe deixar dúvida que fora visto e propositadamente não cumprimentado.


Veio um carro. Olharam fixa e seriamente para os passageiros. Após, gargalhada. Afinal, eram os pais da recente namorada de um deles. Vexame. Nenhuma intimidade com os futuros sogros. Assim passaram a tarde, sempre com um, ao menos, servindo ao deleite dos demais. Vinham professores da escola, parentes, paqueras e por aí afora. Quem tivesse o azar de defrontar-se com um conhecido, que cuidasse, depois, de desfazer o mal-feito.

O último carro. Dentro, Manoel, vulgo Lapada, cara violento, fama de brigão e arruaceiro. Sobrou para Sílvio, pois era quem o conhecia, mas só de oi. Engoliu em seco. Azar! Quis desistir. Até então só se divertira. Sua hora, porém, havia chegado. Podia imaginar a ira do Lapada. Na melhor das hipóteses, e rezava por ela, nunca mais lhe dirigiria um aceno. As risadas, via-as contidas na face dos amigos, prontas para o momento de desaguarem. O carro, perigosamente mais perto. Apegou-se à esperança, última, de que Lapada não os visse. Nada. Como todos, olhou, detendo-se em Sílvio. Acenou. Até sorriu um pouco. Sílvio, obediente às regras, limitou-se a encará-lo, sério. Morto de medo, não movia um só músculo. O sorriso da vítima logo se desvaneceu. Seguiu-se-lhe um ar meio sem graça, logo transformado em ira. Estava frito. Parou o carro, abrindo a porta com violência. Percebia-se-o vivamente transtornado. Iniciou a travessia da avenida. Sequer olhara para os lados. Passos firmes. Cara vermelha, veias a estourar. A última coisa de que Sílvio se recorda foi do líquido abundante e quente escorrendo por suas pernas. Mais, não lembrava.

Por que não falavam com ele? Afinal, não fora o único culpado pela brincadeira. Será que, apesar do medo que sentira, da urina incontida — cujo cheiro ainda sentia no ar —, batera no Lapada num arroubo de coragem? Matara-o? Ou fora atropelado e morto? Claro! Daí o cemitério! Não lembrava porque deve ter ficado em estado de choque.

Levantaram-se para irem à sala do velório. Sílvio os imitou. O caixão aproximava-se, na medida em que a distância entre eles era vencida. Sentiu náuseas. Andava lentamente, um pouco atrás. Sentia que participara diretamente da razão pela qual estavam ali. Mas temia constatar ser o responsável. Manteve-se a uma distância maior. Vira-os debruçar-se sobre o caixão. Choravam. Aproximou-se mais. Olhou para o defunto. Sentiu-se desmaiar. Não podia acreditar. Era ele, Sílvio, no caixão! Infarto, alguém dissera. Morrera na hora. De medo do Lapada.
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Escrito em jun.2006
Conto integrante da Antologia “A Ponte” (selecionada na III Olimpíada Cultural 500 Anos da Língua Portuguesa no Brasil – 2° Sem/2006) e publicado no jornal Gazeta de Alagoas, Caderno “Saber”, de 01/07/2006

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