domingo, 9 de agosto de 2020

A um certo senhor


Era uma vez um senhor que nunca, nunquinha, deixou faltar nada aos filhos. E uma das coisas que mais gostava nele é que não arrotava honestidade. Praticava a honestidade como quem escova os dentes. Não é preciso alardear que se escova os dentes. Arrotava tampouco conhecimento. Nem grandeza. Arrotar arroto, bem que quando mais jovem ele arrotava. Deu-me um péssimo exemplo. Depois ele parou. Simplesmente parou. Silenciosamente, sem alarde.

A sua família, por exemplo, era a família dele. Ponto. Que ao jeito dele amava. Não o via dizendo que a sua família era melhor que as outras. Que seus filhos eram mais inteligentes, corretos, ou outras qualidades. Qualidades que percebia ele enxergava, mas modestamente satisfazia-se com a ciência delas para si. Eu achava isto o máximo. Percebi logo cedo que eu era um fã da modéstia. Acho massa a modéstia. A modéstia é meio parente da honestidade. Você não precisa se dizer modesto. Até porque aí não haverá modéstia. E quando você é modesto ou honesto — interessante... —, você não exige nem arrota a honestidade ou a modéstia que faltaria nos outros. Você vê, avalia, põe de lado, e segue em frente. Falar em massa, adjetivo, e modéstia, substantivo, lembrei-me de Caetano falando de Gilberto Gil e de Milton Nascimento. Na live de seus 78 anos. Um gênio, mas tão modesto... Exaltou Gil, e sua família, e Milton, colocando-os num patamar musical superior a ele e à sua própria família. Modéstia elevada à enésima potência. Lindo demais, isto, acho. Gosto demais de gente assim. Nem preciso dizer que me soou verdadeiro, porque falsa modéstia se enxerga de longe.

Aquele senhor (voltando a ele) era tão modesto que algumas coisas dele só vim a “descobrir” depois que ele nos deixou. Sabia da sua sensibilidade e generosidade. Mas sabia meio por que sabia. Boa parte dos testemunhos vieram após seu falecimento, no velório, até.

Uma vez, já com a saúde debilitada — mas não ao ponto de que eu pudesse prever desfrutaria poucos anos mais dele —, foi homenageado por um dos hospitais em que servira. No caso dele o verbo era esse mesmo: servir. Eu percebi duas coisas, nesse dia/noite: uma, que ele tinha a exata noção da homenagem (nem mais, nem menos); outra, que ele estava orgulhoso de si e de sua trajetória como médico. Mas essa percepção deveu-se unicamente à minha atenção. Porque quando se tratava de exaltação, o que se sobressaía, nele, mesmo, era a modéstia. Como eu era o escrevedor e orador, fui eu que agradeci por ele a homenagem. E eu ali era puros amor e orgulho.

Eu dizia que esse senhor nunca, nunquinha, deixou faltar nada aos filhos. Até hoje me miro em sua prática. Se ele fazia, se ele dava, se ele proporcionava, se ele incentivava — e, importante, ela, sua esposa, apoiava —, tenho como parâmetro para quando preciso fazer, dar, proporcionar ou incentivar os meus. Claro que infelizmente nem de longe com a sabedoria dele.

Mas o fato é que, hoje, se tenho os filhos que tenho — filhos para amar como esse senhor amou aos seus — devo isto a ele (e a ela, que só está entre parênteses, vou explicar, porque hoje o dia é só o dos “dos pais”, e ela generosa e modestamente não vai se incomodar que a exaltação seja a ele).

Sim, não é mais preciso explicar que esse senhor é meu pai. Talvez estivesse explícito desde o início. E, preciso dizer a ele (na esperança que tive um tempo atrás de que, de onde ele está, leia, e me fez escrever): pai, sinto muitas saudades de você.

*http://www.santacasademaceio.com.br/2010/10/aos-79-anos-medico-antonio-eustaquio-e-reconhecido-por-seus-pares/