segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Com Ranulfo, na beira-mar


Estou na beira-mar da Pajuçara. Antes, pela manhã, tinha ido à praia no Ipaneminha, restaurante que existia por lá, cujo trecho de praia em frente foi assim batizado inspirado no Ipanema dos cariocas, naquela época ainda fonte de inspiração para o país inteiro. O Ipaneminha acabou. Mas Ranulfo ficou. E assim se vão tantos anos, e a vitamina de banana que fazíamos na cozinha de D. Nazaré permanece aguçada em meu paladar e meu coração. Quero falar dessa época porque é das mais saudáveis de toda minha vida, só comparável àquela que agora me concede o prazer de lembrá-la com tanta alegria, tanta saudade, tanto amor.

Estou na beira-mar da Pajuçara, uns cem metros depois dos antigos Sete Coqueiros, sentido Ponta Verde. Já tomei banho. Almocei sofregamente pra não perder muito tempo de vida — o adolescente está sempre correndo quando não é pra estudar — e parti para a casa do Ranulfo. D. Nazaré ainda era viva. Sim, meu amigo já sentiu das piores dores da vida, amplificada porque precoce. “Engraçado” que por essa época não senti a mesma dor que sentiria agora. Fiquei ao seu lado, sofri com ele, mas hoje sentiria muitíssimo mais. Coisas da adolescência, acho, fase da vida em que nos tornamos naturalmente mais egoístas.


Estou na beira-mar da Pajuçara. E lembro da invasão vespertina da sua cozinha. Bastava o pão chegar que a gente invadia, entre cinco e seis horas da tarde. Vitamina de banana e pão quentinho com manteiga. “Porra, sacanagem”, fingia protestar o Ranulfo, preocupado porque “arrasávamos” a janta do seu povo. Nem tão no fundo, adorava aquela invasão. Porque ela nunca estava nessas horas, não lembro. Estivesse não estaria a salivar agora, porque a vitamina turbada inexistiria.

Quando tive hepatite, lá pelos meus quinze anos, Ranulfo ia me visitar todos os dias e às vezes levava côco verde pra mim. Era meio viado o gesto, por isto mesmo bonitinho até umas horas. E eu o olhava com amor enquanto ele se acomodava em alguma almofada após invadir meu quarto, como se estivesse em casa (e o faz até hoje), pensando no privilégio de ter um amigo desse.

Estou na beira-mar da Pajuçara, sentado com ele e outros amigos “sem fazer nada” no banco de concreto em frente à sua casa, na hoje Av. Sílvio Viana. Acabáramos de aperrear o Jalbinhas — pivete irmão dele —, de quem há pouco fugíramos do pedaço de tijolo que tinha nas mãos. Férias inesquecíveis as que vivia, ano após ano.

Ranulfo tinha admiração por mim. Quem pode gostar do que não admira? Sua simplicidade, generosidade e lealdade me conquistaram sem que eu me desse conta, na fase mais inocente de nossas vidas. Nunca senti “um família” demonstrar o que ele me devotava. Foi quem sem querer me fez ver, quando ainda me punha a filosofar, que o coração não necessariamente está tomado pelo sangue do parentesco. No coração dele corre o meu sangue. No meu, o dele.

A vida não conseguiu nos separar. Somos amigos próximos, até hoje. Nunca conseguimos ficar longe um do outro por muito tempo. Ele acaba de realizar mais uma conquista, que muito me alegra, claro. Fico então a aguardá-lo, sabendo que brevemente estará de novo a nutrir-me com sua amizade, quase diariamente.

Estou na beira-mar da Pajuçara. No banco em frente à hoje Av. Sílvio Viana. Estou de Katina Surf nos pés. Bronzeado e feliz. Estou a lembrar-me, bem de perto e sorrindo, do meu amigo Ranulfo.

Saudades do Poço


Derramando em meus olhos
Ia a luz a alegrar-me
Com o calor bom
Do povo daquele poço

Coração reclamava
Enquanto sem jeito explicava
Hoje não podia beber
Do povo daquele poço

Peito doía feliz
A alegria de saudade boa
Dessa vez não fui comer
Do povo daquele poço

Cinco anos parece
Vida inteira feliz
Amanhã hei de me aquecer
Do povo daquele poço

Fome do seu céu
Sede de seu calor
Queria mesmo era afundar-me
No regato daquele poço

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

O quadro


Podia ser o perfume de um quadro. De uma paisagem pintada num. Via todo ele num ângulo de quase 180º. Quadro com cheiro de terra e mato molhados pela repentina queda d’água, sem dar sinais prévios aos desatentos como ele de que viria. Tão rápida veio, quase tanto se foi. Quadro bonito, meio escuro. O sol já se pôs. Só a lua cheia o clareava. Ideal.

A boa música que ouvia no aparelho eletrônico e o remetia a tantas boas sensações e lembranças formava belíssima composição com o som que vinha do quadro. O vento nas folhas da mata e suas fruteiras produzia sinfonia que ora aumentava ora diminuía de volume. E aí via mais do que a natureza exposta no quadro vivo, sentia mais do que seu cheiro, ouvia mais do que sua música.

Às vezes o cheiro se confundia com o da mulher. O cheiro bom da mulher que discretamente vinha de vez em quando ver se ele precisava de alguma coisa. Não queria interrompê-lo. Sabia que ele escrevia enquanto contemplava o quadro que parecia confundir-se com a sua vida, agora. No momento em que ela se achegava era tomado também pela sensação de que o quadro perfumado e vivo alcançara a completude. Foi quando percebeu que do quadro também exalava calor. Aquele que o aquecia, liberando a passagem do vento frio, compensando-o.

Voltou a chover. Mais forte e com vento. Sentia em seu rosto, mãos e braços os raros finos pingos que conseguiam alcançá-lo. Mesmo assim não se movia, senão pelos dedos quase frenéticos a teclar. O mais — ver, sentir, ouvir — era imóvel que o fazia. Como que a tentar fotografar para sempre a imagem, o vento e o cheiro que vinham daquele quadro. Daquele quadro e daquela mulher com um cheiro tão bom, que de vez em quando o compunha. E que nesse momento era fotografado em sua mente e coração. Para eternizar-se.