segunda-feira, 14 de maio de 2012

Uma noite em Veneza

Entardecer no Grande Canal
Hora atrás haviam embarcado na última gôndola. Todas as outras já estavam ancoradas, afinal anoitecera há pelo menos hora e meia, sendo certo que não escurece àquela época antes das vinte horas. O frenético movimento de embarcações no Grande Canal somente permanecia na lembrança recente. Seria uma experiência diferente navegar à noite. Foram.

Gôndola sendo ancorada
O som audível era apenas o da música das águas rasgadas pela embarcação, e também aqueles produzidos pelo golpe certeiro e ritmado do remo do único gondoleiro, lá da popa, quando as cortavam, suave mas vigorosamente, embalando a noite romântica impregnada de mistérios e segredos percebidos através da penumbra das esquinas e canais navegáveis, e de suas construções seculares.


Pés de casal em passeio de gôndola à noite
Sentaram-se lado a lado, juntos e de mãos dadas, pernas estiradas pra frente e cruzadas, o rosto dela recostado em seu ombro, embalados pelo balanço das águas promovido pelo movimento daquela espécie única de canoa sofisticada. Vez por outra ele a envolvia mais em seus braços, trazendo-a mais próximo, enquanto ela retribuía, amparando-se e apertando-o mais junto a si com sua mão e braço livres. Não lembravam do gondoleiro, senão quando se surpreendiam com a destreza com que a gôndola era conduzida, ora por canais estreitíssimos, ora sob pontes minúsculas, ou ainda quando vez por outra ouviam a sua voz anunciando algo turisticamente relevante: “Aqui morou Marco Polo!” E pra casa do escritor (e também explorador, mercador e embaixador) dirigiam seus olhares embevecidos e curiosos. Em outros momentos simplesmente beijavam-se, mesmo que tivessem que fechar os olhos e perder alguma parte do passeio, que infelizmente para eles teria que acabar à hora aprazada, não muito distante.

Peixe com massa e frutos do mar
Estavam em abril, agora novamente caminhando pelas ruas já quase desertas naquele fim de inverno ainda frio da tão antiga quanto singular, linda e romântica Veneza. Poucos, e certamente notívagos como eles, resistiam a recolher-se às suas casas ou hospedarias. A quase totalidade dos bares e restaurantes visíveis já cerrara suas portas, inclusive aquele em que horas atrás, antes mesmo do passeio de gôndola, haviam desfrutado do belo peixe servido inteiro, deliciosamente preparado, sugerido com acerto por Giorgio, maitre simpático, conversador e, fazendo jus à fama do italiano, também galanteador — como pudemos constatar por seu desempenho ao atender mesa vizinha ocupada por quatro sorridentes e elegantes senhoras —, ainda muito bem apessoado no alto dos seus sessenta e poucos anos, cabelos ainda grisalhos mas quase totalmente brancos e bigode cuidadosamente cultivado.

Canal em Veneza
O passo era apressado, culpa do receio de que nada mais lá houvesse aberto. Já haviam saído do burburinho da Ponte de Rialto e cercanias — seus bares, restaurantes, lojinhas de suvenires e paisagens deslumbrantes. Durante alguns momentos do trajeto só ouviam seus próprios passos ressoando por entre as paredes dos becos e ruelas, alguns incrivelmente estreitos, e dos pequenos canais. Aqui e ali, não sem raridade, cruzavam com pequenos grupos ou casais, aparentemente turistas como eles.

Canal em Veneza
Certo momento parecia terem ouvido o som de música ao longe, que na medida em que caminhavam naquela direção ia ficando mais audível. Deveriam estar perto, alegraram-se. “Quantas horas são?” “Quase meia-noite”. As mãos, que já entrelaçadas estavam, apertaram-se. O andar tornou-se vigoroso. Dobraram mais uma esquina, e outra, e outra... Até que, finalmente, ei-la! Lá estava. Mais bela, glamurosa e romântica do que nunca: Piazza San Marco (ou Praça São Marco).


Pça São Marco (perto de 10h)
A hora era perfeita. Dizem que duas são as melhores partes do dia para visitá-la: pela manhã, antes das 10 horas — quando os turistas não a tenham ainda maculado com sua algazarra, poses para fotografia e filas para visitação à Basílica de São Marco e ao Palácio dos Doges —, ou à noite, quando Veneza já dava os primeiros sinais de que se preparava para adormecer. Dito e comprovado — ao menos quanto à noite, já que San Marco, antes das 10 horas do dia, somente seria comprovado por eles nos dias que se seguiriam.

Café em São Marco (tarde da noite)
Apenas os dois principais cafés da Praça resistiam abertos. Música clássica e sucessos do cinema mundial magistralmente tocados por suas orquestras ressoavam por todos os cantos e recantos de São Marco, quiçá de Veneza, queriam acreditar. Poucos turistas, muito poucos mesmo, ainda permaneciam por ali. Perfeito.


Vinho e água comprados, taças na mão, conduziu-a meio atabalhoadamente até quase ao meio da praça. Acompanhou-o. Serviu o vinho, descansou no chão as garrafas, e brindaram à graça de estarem ali, naquele pedaço de paraíso, naquele momento. Àquelas circunstâncias tão favoravelmente encantadoras, à coragem de lutar e de se entregar à paixão. À felicidade. Brindaram ao amor. Nesse exato momento, ouviram de uma das orquestras o som de “Unchained Melody”. Olharam-se, surpresos e sorrindo, e abraçaram-se. E assim abraçados, começaram a dançar.
Casal dançando na Pça São Marco