quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

O prefeito Graciliano Ramos

Crônica em homenagem aos 120 anos de nascimento do escritor alagoano, e prefeito (enfoque do texto), Graciliano Ramos, publicado originalmente na Revista da ADVOCEF  (ilustração imediatamente abaixo) Segue:

Os anos eram os de 1928/30. A cidade de Palmeira dos Índios, lá no agreste alagoano, conhecida como a “Princesa do Sertão”, estava em polvorosa. Aliás, cabe logo dizer, como ele disse então, no início do 1928 era uma “princesa, vá lá, mas uma princesa muito nua, muito madraça, muito suja, muito escavada.”

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Ressabiado e revoltado estava não seu povo mais necessitado e até então esquecido (este sorria de orelha a orelha), mas boa parte do que se convencionou chamar elite, ou no dizer daquele enfezado manso, os que a administravam em particular: os “cobradores de impostos, o Comandante do Destacamento, os soldados”, os “Prefeitos Coronéis e Prefeitos inspetores de quarteirões”, os “fiscais”, que “resolviam questões de polícia e advogavam”, como também o que chamou de “pobre povo sofredor”: os “negociantes, proprietários, industriais, agiotas que esfolam o próximo com juros de judeu” (hoje esta referência lhe traria problemas com os politicamente corretos), povo “bem comido e bem bebido”, que “quer escolas, quer luz, quer estradas, quer higiene”, é “exigente e resmungão”, mas que, como “ninguém ignora que se não obtém de graça as coisas exigidas”, “acha que os impostos devem ser pagos pelos outros”.


Parido foi em Quebrangulo, na mesma Terra dos Marechais, como são conhecidas as Alagoas — referência aos primeiros dois presidentes do país, ambos também de ventre e luz alagoana — ou Paraíso das Águas — porque cercada e cortada por lagoas e rios a mais de ver. Saiu de lá tão cedo, porém, que de lá nem lhe ficou lembrança, de prazer ou de rancor. Imbricou-se mesmo foi com a Viçosa, a “Atenas Alagoana” e “Princesa das Matas”, referência ao próprio relator e a poetas do nível de um Zé do Cavaquinho, ao folclorista (e médico) Théo Brandão, ao escritor e ativista Otávio Brandão (primeiro tradutor do Manifesto Comunista de Marx e Engels) e muitos outros. Pra se ter uma melhor ideia do que resumi pelo aperto do espaço, entre os “outros” ainda figura, por exemplo(!), o velho Teotônio Vilela, Menestrel das Alagoas, e seu irmão Dom Avelar, Cardeal Primaz do Brasil.

Nome dele? Graciliano Ramos! Escritor, um dos mais importantes do país e do mundo, mas naquela época disto não se falava, senão à boca miúda, na intimidade, bem entendido. Seu primeiro livro, Caetés, inclusive só veio a público três anos depois, e justamente porque se engraçara de seus relatórios (estes cujas partes muita vez aqui estão e estarão aspeados) um editor de sobrenome gringo, o Schimidt, lá das bandas do Rio de Janeiro. É que nos inícios de 1929 e 1930 o então prefeito endereçou ao Governador do Estado dois relatórios dando conta da administração que promovera nos anos anteriores. Eles a razão do engraçamento do editor e onde presentes os tais trechos entre aspas nesta conversa que ora travo com os senhores (quando flexiono apenas o número, não assim o gênero, é porque mantenho-me fiel à velha regra de que incluídas também as belas rosas do feminino; assim, senhoras e senhoritas se sintam incluídas entre os senhores), razão maior pros cabras do poder provinciano se terem estrebuchado de raiva.

Mas eu dizia que o povo (que não era o povo exatamente, como já lhes expliquei) tava virado da breca, e não exagerava. Pensem vocês — curiosos leitores — que o velho (mas então ainda novo) Graça fez uma revolução naquela antiga aldeia dos Xucurus, e é por sua pena estilosa, com cheiro da seca nordestina e brisa do agreste, que ficamos sabendo.

Ainda no 1928, dos tantos funcionários que encontrou no respectivo janeiro restaram poucos ao fim. Relatou: “saíram os que faziam política e os que não faziam coisa nenhuma”, de modo que os que restaram “não se metem onde não são necessários, cumprem as suas obrigações e, sobretudo, não se enganam em contas”, em face do que, fez questão de registrar, muito lhes ficou a dever. Pra menos? Não é. Cabra danado foi.

A receita do município ainda também no primeiro ano aumentou em quase 50%, mas com milagre não: seja porque não se gabava “de empregar dinheiro com inteligência”, seja porque realizou “despesas que não faria se elas não estivessem determinadas no orçamento.”

A iluminação da cidadela custou-lhe muito, culpa de “quem fez o contrato com a empresa fornecedora”, ao ponto de avaliar tenha sido embora “negócio referente à claridade”, o “assinaram (..) às escuras”, já que daria até para pagar “a luz que a lua” lhes dava.

Lamentou-se não ter construído novo cemitério, dada a futura insuficiência do então existente que prognosticou, mas os gastos com as obras necessárias aos vivos fizeram por obrigar os mortos a esperarem época economicamente mais benfazeja.

Boas notícias: cuidou “bastante da limpeza pública. Ruas varridas, retirado “o lixo acumulado pelas gerações que por aqui [lá] passaram”, “posto de higiene” instalado, “estradas de Quebrangulo, da Porcina, de Olhos d’Água aos limites de Limoeiro, na direção de Cana Brava” consertadas, “estrada de Palmeira de Fora” construída, e até o “terrapleno da lagoa” foi realizado. Neste ponto, esclareceu: “Convenho em que o dinheiro do povo poderia ser mais útil se estivesse nas mãos, ou nos bolsos, de outro menos incompetente do que eu; em todo o caso, transformando-o em pedra, cal, cimento, etc., sempre procedo melhor que se o distribuísse com os meus parentes, que necessitam, coitados.”

Seu relato é longo, profícuo e reto como os caminhos que buscou percorrer: sempre os mais curtos, de modo que nas “estradas que se abriram só há curvas onde as retas foram inteiramente impossíveis.”

Mais desagrado: “Certos indivíduos (...) imaginam devem ser consultados; outros se julgam autoridade bastante para dizer aos contribuintes que não paguem impostos.” Com esses, fez questão de frisar, não se entendeu.

Reconhece haver quem “ache tudo ruim, e ria constrangidamente, e escreva cartas anônimas, e adoeça, e se morda por não ver a infalível maroteirazinha, a abençoada canalhice (...); há quem não compreenda que um ato administrativo seja isento de lucro pessoal”. Havia até que o buscava embaraçar “em coisas tão simples como mandar quebrar as pedras dos caminhos.”

Brigou ainda muito mais: favoreceu “a agricultura livrando-a dos bichos criados à toa; ataquei as patifarias dos pequeninos senhores feudais, exploradores da canalha.” Arrecadou, só em 1929, “mais de dois contos de réis de multas. E não se esmerilhavam contravenções. As infrações (...) foram denunciadas pelas pessoas ofendidas, de ordinário gente miúda, habituada a sofrer a opressão dos que vão trepando.” É que se “deixasse em paz o proprietário que abre as cercas de um desgraçado agricultor e lhe transforma o pasto em lavoura”, diz, “deveria enforcar-me.

Na verdade, vaticina o que entende melhor para o município: “Mete na Prefeitura um sujeito hábil e vinga-se dizendo de mim cobras e lagartos. Paz e prosperidade.” Pra todos nós, Graciliano Ramos. Vem nos ensinar, que a lição é já esquecida.