domingo, 29 de novembro de 2015

Para sempre, meu pai*

31/12/2010
*Tb pub no jornal GAZETA DE ALAGOAS, 28.11.2015, sábado.

Uma vez, você me disse: nada poderia ser mais importante do que a nossa união. Regozijava-se, porque via éramos leais uns com os outros. Vejo que isto é perceptível mesmo quando você já se foi, porque nossa mãe segue sendo a nossa liga.

Interessante como você parecia ser sábio, no seu jeito (só) aparentemente displicente de ver e dizer as coisas. Fui percebendo por exemplos que testemunhava na sua profissão, de médico clínico, e por diagnósticos ou prognósticos sobre os problemas da vida que nos desafiavam. Invariavelmente os ouvia, no silêncio de seu quarto, ou, mais amiúde, em nossas viagens pelo interior do estado, quando você conseguia me arrancar da cama para acompanhá-lo bem cedo, ou quando você se resignava aos meus horários, para ter-me consigo.

Uma vez colega seu testemunhou-me diálogo havido contigo sobre concurso público que eu prestara: se ele não passar, só passaram gênios. Sorri, porque você não me deixava perceber essa sua expectativa. Também me dizia da minha irmã, primogênita, que seria a melhor médica que poderia ter passado por aqui, não fosse tão boa nas letras, donde talvez por isto a sua caçula tenha seguido o caminho que aquela abdicara. Noutra, um dos filhos de compadre seu vaticinara-me: meu pai me disse: se ele tinha algum amigo na vida, esse amigo era o Toinho.

Nunca conheci ninguém mais da paz do que você. Certamente puxara a seu pai, o Major Ioiô, o mais pacífico “coronel” dessas bandas. E, aqui, você era involuntariamente dissimulado, porque quem não o conhecia tinha-o por bravo. Você era tão da paz, que não raro achei-o tolo, alguém que os outros teriam feito ou faziam de bobo. Para depois constatar que sua atitude era sempre a de quem tudo fazia para evitar o conflito. Em momento algum, porém, em que houvesse necessitado da sua presença masculina, você me faltou. Nessas horas de aflição, sentia sua força e o bem que ser seu filho me fazia.

Minha mãe foi muito amada por você. Nunca presenciei alguém que humildemente visse tanto a mulher como alguém muito além de si. Sempre percebi que você a considerava o leme de nossa família. Mesmo quando o leme era você. E ela, por sua vez, amou-o tanto, que estava definhando junto com você e as doenças que teimavam em testar a sua resistência. É, pai, a minha mãe teve a saúde renovada quando você, sem se render, foi chamado por nosso Pai que, finalmente, fê-lo descansar.


Aí, vez por outra, aqui no Villas, vejo-me a dizer-te do meu amor. E do amor que você nos deixou: a mim, a Rosina, a Dani, e a nossa mãe. Para sempre.

domingo, 4 de outubro de 2015

Rendendo-me à saudade (e à tristeza)*

*Tb pub no Caderno SABER, do jornal GAZETA DE ALAGOAS, de 03.10.2015

Sinto saudades de ti
Suas mãos parecem com as minhas
Eu te amo tanto, pai

Sinto você por perto
Queria saber está comigo
Eu te amo tanto, pai

Não há dia sem você
Em todos lembro de ti
Eu te amo tanto, pai

Vejo alguém que dirige bem
Você que me ensinou
Eu te amo tanto, pai

Nunca me deixou faltar nada
Ao ponto de que nem percebia
Eu te amo tanto, pai

Olho de novo pra minhas mãos no teclado
Gosto de olhar as suas nas minhas
Eu te amo tanto, pai

Quero tanto que você esteja bem
Quero tanto que você não esteja mais sofrendo
Quero tanto sentir você de novo comigo

Suas pernas magrinhas
Seu bíceps, que, eu pequeno, você me mostrou era grande
Sua presença que nunca me faltou

Seu desejo eu estivesse próximo
Seu pedido de socorro, doentinho
Eu te amo tanto, pai

Ah, como sinto sua falta
Como sinto falta de tanta coisa
Eu te amo tanto, pai

Quando me vejo descartando a guerra
Lembro que assim era você
Eu te amo tanto, pai

Não há madrugada que não lembre
Você as desbravava
Eu te amo tanto, pai

Penedo, quatro horas da matina
Ah, pai, graças a Deus acordei para acompanhá-lo
Eu te amo tanto, pai

Consegui trazê-lo aqui
Essa escada você subiu
Eu te amo tanto, pai

Lagartixa, as mais diversas épocas
Desde festa de Santa Efigênia
Eu te amo tanto, pai

O trator, os pés de laranja
Os passarinhos que desisti de alvejar
Eu te amo tanto, pai

Fico imaginando, meu velho
O tanto que você me amou e não disse
Eu te amo tanto, pai

Lembro do seu pedido de socorro na madrugada
Tinha que ser eu
Eu te amo tanto, pai

E eu torcia que não houvesse esse pedido
Pelas duas razões
Eu te amo tanto, pai

Não queria que você precisasse de socorro
E não me sentia forte para ajudá-lo
Eu te amo tanto, pai

Lembro de tudo
Não há nada que me escape de você
Eu te amo tanto, pai

Ainda vejo sua cabecinha perto da minha
Quando são, e também quando doentinho
Eu te amo tanto, pai

Nada me era pior do que ir vê-lo naquele quarto
Tão fraquinho, tão indefeso
Desculpe-me, meu pai

Choro quando me decido a deixar você vir
Porque deixar significa sentir uma imensa saudade
E sempre tem sofrimento

Sinto tanto sua falta, meu pai...

Amor e amizade, por gosto*

*Tb pub no Caderno SABER, do jornal GAZETA DE ALAGOAS, de 03.10.2015

Nunca pensei que amizade fosse mais importante do que o amor. Acho que assim deduzi intuitivamente. Apesar das poucas e boas amizades. Ou baseado no amor de então. Mas até por ser de então, negaria o que digo. Não sei. Mas nunca pensei.

Pra mim o amor sempre esteve acima de tudo. Na pior das hipóteses seria tão importante quanto. Quanto ao que houvesse a ser comparado. O amor pra mim sempre foi o máximo. Mas até por ser assim, o próximo, se existisse, negaria o que digo. Não sei. Mas pra mim sempre esteve acima.

O amor sempre esteve além. Nada se igualaria. Nem a amizade. Nem a maior das amizades. Talvez porque o amor, o verdadeiro amor, pra mim sempre ocupasse o posto maior também na amizade. Nunca consegui entender o amor que não fosse amigo. Para ser amor, teria que ser amigo. O mais amigo. Mas nem por isto seria excludente. Até por ser amor.

Fui descobrindo, talvez por sorte, que amizades e amores sempre são substituíveis. Não que sejam descartáveis. Mas quando você pensa que são eternos, e (ainda) não são, a vida sempre lhe brinda com a possibilidade de nova amizade e novo amor. Acho, por isto, que o único amor e a única amizade eternos são aqueles que você tem quando morre. Serão eternos, aqui.


Gosto da ideia de amor eterno. Gosto também da de amizade eterna. Gosto mesmo é de ser amado. Muito amado. Amor e amizade. Porque gosto de amar.

quinta-feira, 24 de setembro de 2015

Arco-íris


A felicidade é verde
Como as folhas e tapetes
De nosso amor

Como o céu e o horizonte
De nosso amor
É também azul a felicidade


Vermelha, a felicidade
Assim também o é o sangue escuro
De nosso amor

Ao mesmo tempo é branca
A felicidade
Como o abraço doce
De nosso amor

É negra, amarela, laranja
De todas as cores é a felicidade
Que pintam de luz
O nosso amor

A felicidade é da tua cor


Uma noite, na ditadura*

http://www.ricbit.com
*Tb pub no jornal Gazeta de Alagoas e nos sítios Pragmatismo Político e PCdoB - Alagoas

Devia ter entre seis, dez anos (1970/1974). Vez em quando íamos dormir na casa de meus avós maternos, Togo e Juracy, lá na Des. Amorim Lima. Por lá também havia outros velhinhos adoráveis, como a d. Marinete e seu esposo, “seu” Djalma.

Aos domingos, missa nos Capuchinhos, logo cedo, pra mim cedíssimo, mas eu gostava, porque me sentia mais próximo de Deus e de vovó. Algo como: estou indo à missa com a minha avó e isto é muito importante! E o companheirismo ditado pelo exercício daquele compromisso cristão, fazia-me amá-la ainda mais nesses momentos. Mesmo quando eu, impaciente, torcia pra missa acabar logo.

Naquela época, sabe-se, havia o delicioso e então possível hábito de familiares e amigos sentarem-se à calçada à porta de casa, para jogar conversa fora. E não éramos exceção, embora, ao que me recorde, meu avô não compartilhava muito desse ritual: preferia ficar lendo algum livro ou vendo o noticiário. Eu achava o máximo desfrutar daqueles momentos; havia uma sensação, real, de enorme cumplicidade e união entre todos nós. Como se sentar-se ali pra bater papo fortalecesse os laços que já existiam. E fortaleciam.


Em algumas dessas noites, embora na penumbra provocada pela parca iluminação da época, enxerguei, do outro lado da rua, um homem carregando um punhado de livros grossos, cabeça levemente abaixada, caminhando a passos silenciosos, rápidos e furtivos no sentido Tomás Espíndola – Comendador Palmeira. Não olhou em nossa direção, tampouco nos cumprimentou.

Foi tão discreto, que poderia ter passado desapercebido, estivéssemos distraídos. Mas eu não estava, e de pronto perguntei, entre espantado e curioso: quem é esse homem, vovó? Tão estranho, parece estar se escondendo... É o filho da Marinete. Ele é comunista, respondeu, falando baixinho, como se ao dizer aquela palavra nos colocasse em algum tipo de risco. Depois deve ter dito algo como: é proibido ser comunista, pode ser preso. A Marinete se preocupa tanto com ele, coitada... Senti o tom de solidariedade de minha avó com a dor da amiga.


Devo ter perguntado mais alguma coisa, como o que é ser comunista, mas confesso que não lembro. A conversa teria parado por aí. E juntando o pouco que eu vi e ouvi, captei que devia ser algo muito perigoso. Mas não sei por que, ao invés de olhá-lo com medo, desejei poder conhecê-lo; de esquecer o ocorrido, queria saber o que havia nos livros que carregava; de enxergá-lo como vilão, vi-o como alguém de muita coragem. Muito mais tarde fiquei sabendo: era o Eduardo Bomfim.

sábado, 12 de setembro de 2015

A moça do souvenir*

*Falhei novamente com vcs, mas principalmente com o compromisso, firmado comigo mesmo, de postar aqui sempre às quartas-feiras. Desta vez, eu me encontrava numa fazenda no interior de Minas, onde só raramente se podia contar com Wi-Fi. Hoje estou conseguindo, então lá vai, com minhas desculpas a vcs que estiveram por aqui, a crônica "A moça do souvenir", q foi publicada na Gazeta de Alagoas e nos sítios Pragmatismo Político e PCdoB-Alagoas, já que a havia enviado pra lá antes de pra cá viajar.

Era uma bela cubana de olhos azuis-claros, tez alva, cabelos negros longos e levemente cacheados, displicentemente repartidos ao meio e jogados para trásnuma espécie de rabo-de-cavalo adornado por discreto adereço de artesanato da ilha, incapaz, porém, de impedir que ombro e colo fossem parcialmente recobertos por mechas sinuosas, conferindo-lhe um ar de espontaneidade a harmonizar-se com toda a sua figura e gestos. Sua simpatia estava tão à flor da pele quanto a largueza de seu sorriso e acolhimento genuíno.

O hotel pertencia ao estado cubano, bem assim a loja de souvenirs lá situada, onde trabalhava. Havíamos acabado de tomar o café da manhã após nosso primeiro dia em Havana e entramos para olhar e, se o caso, comprar alguma coisa. Embora não mais fumante, meus olhos foram atraídos por uma bela e elegante carteira de cigarrilhas, Cohiba Club 20, onde inobstante se lia: “RECUERDA, ERES EL ESPEJO PARA TUS HIJOS, NO FUMES - MINSAP”, o suficiente para dissuadir-me de eventual ímpeto tabagista.

Logo estávamos os três a conversar alegremente; nós com disfarçada curiosidade, temendo até menos ser indiscretos do que ignorantes, afinal, como viemos a definitivamente constatar dias após, em se tratando de Cuba, diferentemente dos milhares de turistas canadenses, europeus e demais latino-americanos e caribenhos que a invadiam diariamente, os ignorantes éramos nós, os ainda poucos brasileiros que visitavam a ilha caribenha.

Ela, por sua vez, sabia do investimento do Brasil às empresas brasileiras no Porto de Mariel, do Mais Médicos, de Lula e da reeleição de Dilma. Como já à vontade, engolimos a vergonha e confessamos que boa parte da sociedade brasileira era muito ignorante a respeito de Cuba, por isto mesmo extremamente preconceituosa em relação à ilha, ao ponto de considerar Fidel um ditador, terrível e sanguinário, e Cuba um lugar atrasado e sem atrativo.

Assim que terminou de nos ouvir, ela, notoriamente surpresa, envergou o tronco para baixo, sorrindo farta e esplendorosamente, mas meio como se desculpasse de nós porque sorria. Recompondo-se, passou a dizer-nosem tom de indisfarçável surpresa e brandura: Fidel, terrível sanguinário? Cuba, ditadura? Meu Deus, temos um socialismo democrático! Somos consultados e participamos de tudo o que diz respeito à nossa vida e ao nosso país. Temos eleições até demais, meus amigos brasileiros. Quando voltarem à Cuba, tragam um desses para que ele veja por si mesmo. Tô fora!, respondi.

quarta-feira, 1 de abril de 2015

Vai pra Cuba! (II)*

*Tb pub no jornal Gazeta de Alagoas e nos sítios Pragmatismo Político e PCdoB/AL

Imensa a dificuldadeNão havia agências de turismo que oferecessem algum pacote para Cuba, ou que tivesse conhecimento razoável de hotéis na ilha.Mais! Não descobrimos no Brasil uma só operadora a realizar a intermediação. A “culpa” não é delas,porém, tão vítimas quanto.

 

Com efeito, graças ao bloqueio cruel e bestial (ainda) imprimido à Cuba pela (ainda) maior potência econômica e bélica do planeta, inexisteabsoluta referência à ilha e a seus numerosos hotéis em sítios de busca na internet, invariavelmente estadunidenses.

 

O que (ainda) surpreendia, por ignorância, é que as dificuldades ocorriam, em primeiro lugar, no Brasil! Era aqui que a informação era suprimida, como nas piores ditaduras da história. Seria por isto, indagava então com minhas velhas e inutilizadas abotoaduras guardadas inertes no armário, a existência do autodenominado Movimento Brasil Livre, com o perdão pela irresistível ironia? Certamente que não, é claro. Bom seria que no Brasil, onde se vive a mais ampla liberdade de opinião e manifestação de toda a nossa história, tal movimento fosse contra a moderna ditadura, aquela imprimida pela grande mídia hegemônica e pelo poder econômico, muito mais determinante do que o político, como as investigações policiais hoje levadas a cabo estãodemonstrando.

 

No fundo, porém, acreditava, então, que as dificuldades se davam mesmo pela peculiar situação de Cuba, que (ainda) persiste em estado de vigília, em face dos milhares de ataques recebidossejam diretamente pelo governo estadunidense de então, seja com seu apoio. Redondamente enganado, porém. A verdade estava na compreensão antes exposta. A supressão de informação nos era imposta pelos grandes grupos midiáticos e por nossa sofríveleducação político-histórica; tornamo-nos tolos deslumbrados com tudo o que seja estadunidense, inclusive para desprezar a ilha. Exemplo maior é que a expressão “Vai pra Cuba!” é aqui, pasme, xingamento.

 

Finalmente, depois do auxílio inestimável e irrepreensível da agência de turismo escolhida, cujo nome não posso declinar, conseguimos hotel em Havana e partirmos.

 

Entre outras singelas observações e reflexões que aos poucos me disponho a aqui realizar, encerro afirmando que me deparei, naqueles saudosos dias, com uma multidão(!)de turistas canadenses e europeus, desde franceses, alemães e italianos, até austríacos, suecos e australianos, além de vários latino-americanos.

 

Brasileiros? Alguns poucos, muito poucos.


sábado, 28 de março de 2015

Saudade triste

O que sei é o sentimento de sua falta
É-me tão saudosa, mas não a querer senti-la
Tão presente, mas não a querer afastá-la
Tão triste, que os dias precisam passar
Para que eu consiga escrever-lhe,
Como agora

Fujo de sentir-te muito próximo
Tento não pensar, não sentir
Não adianta fugir, constato
Acabo voltando a te enfrentar
Sua imagem sã, que bom
A doente, que ruim

Onde você está?
Não sei pedir por quem já se foi...
Só pra que estejas bem
Tanta saudade sinto
Tanta falta me fazes
Como posso pedir, voltes?

Tento esquecer aquele dia
Tento não lembrar o teu aniversário
É que a lembrança me é tão triste
Esses dias passam, não esqueço porém
Queria é te ver
Tua bengala, teu chapéu

Tua vontade de tudo...

terça-feira, 24 de março de 2015

Vai pra CUBA!*

http://www.andremansur.com
*Tb. pub. no jornal Gazeta de Alagoas e nos sítios Pragmatismo Político e PCdoB/AL, de 18/03/2015

Vai pra Cuba!, esgoelava-se, imaginando estar a agredir quem, como eu, entende que os governos Lula e Dilma, com todas as dificuldades e equívocos em que incorreram, são os melhores que este país já foi capaz de eleger e construir. Dados matemáticos provam irrefutavelmente o que afirmo, para ficar só neles. Abstenho-me de citá-los. Estão na internet, para quem quiser conhecê-los.

Uma vez um alagoano, vendo-me a tecer elogios a Cuba em uma rede social, provavelmente ao sucesso de suas políticas educacional e de saúde, indagou-me: André, você já foi a Cuba?, querendo com sua pergunta insinuar que eu só a defendia porque não a conhecia. Claro que para quem, como eu, conhecia um tanto da história e da realidade da ilha (ou das ilhas, como mais correto), mesmo sem lá ter ido, sua pergunta capciosa não encontrava guarida ao fim desejado. Mas ele podia fazê-lo, afinal estivera lá.

Noutra vez, assisti numa rede social alguém destilar lamentações do quão a pobre Cuba estava decadente, naturalmente face ao governo socialista que lá se implantara. Pobre Cuba, lamentava, com sua sensibilidade forjada no preconceito e, por isto mesmo, na ignorância acerca da história daquele povo.

Tratando-se de velho desejo irrefreável, fui à Cuba. E confesso que me surpreendi lembrando-me de suas observações, notadamente porque me era difícil compreender como alguém ligado às artes (ambos supostamente eram) poderia ter uma visão tão preconceituosa, limitada e canhestra acerca da ilha caribenha; a gente sempre tem a ideia (falsa, entretanto) de que um sujeito assim, por em princípio ter a sensibilidade mais aguçada, escaparia do preconceito ideológico que lhe fora, como aos brasileiros em geral, incutido. Ledo engano.

Então, fui. E constatei que Cuba era ainda muito mais impressionante, admirável, bela e culta do que imaginara. Se antes já admirava o cubano, passei a fazê-lo com a razão escorada no testemunho diariamente observado e constatado em cada esquina de qualquer aglomerado urbano de suas muitas cidades.


Aprendi muito. Mas por ora finalizo dizendo que uma das maiores lições que aprendi é que uma nação é mesmo feita de seu povo. Cuba é alegria, generosidade, sacrifício, coragem, beleza, luta, orgulho, autoestima elevada, educação, cultura, amor. E o povo cubano é o maior responsável por Cuba ser o que é. Lembrei-me das vaias e ataques sofridas por seus médicos ao desembarcarem em meu país. E intimamente aplaudi-os novamente, agora ainda mais envergonhado...

segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

Clareia

http://pt.slideshare.net/
Agora já não via mais nada, senão seu ombro desnudando-se, a pele alva descobrindo-se da fina alça do maiô que escorregara até quase a linha que faz limite com o antebraço. Sentiu o coração pulsar sôfrego e arrítmico, e a caixa torácica mover-se freneticamente em função das pancadas desferidas pelo músculo desesperado. Só conseguiu levar a mão ao peito, como pudesse com isto acalmá-lo, contê-lo. No mais, seus olhos e alma estavam grudados na cena e na tentativa instintiva, muda e telepática de soerguer o fino fio de tecido. Por que ele disfarçadamente não o faz, não a recompõe, conseguiu perguntar-se no meio da confusão emocional em que estava agora imerso. Tinha vontade mesmo de gritar para que o fizesse. Pudesse, avançaria em sua direção e o repeleria de perto de sua amada. Viu quando a mão direita do sujeito desceu de seu ombro esquerdo, lenta e sedutoramente, e passou por cima da alça, descansando durante alguns segundos logo abaixo dela, para em seguida fazer o movimento de volta, deixando-a onde já estava, novamente sem a mínima disposição de recompô-la. Ele não a suspendeu! Poderia tê-lo feito, o desavergonhado... Fez de propósito!, concluía, contendo-se para manter-se passivo e quieto em sua poltrona. Até que finalmente ultrapassado o limite de sua própria capacidade de suportar aquilo. A angústia que vinha sentindo até ali, o ciúme, a dor..., de nada mais lembrava (ou queria lembrar) e o que faziam ali ele e sua amada. O “pas-de-deux” chegara ao fim, mas para ele, mesmo do epílogo se tratasse, beiraria o insuportável. Olhou para a máquina fotográfica, conteve-se para não arremessá-la como fosse ela a merecer o castigo que seu coração mandava fosse impingido a algo ou a alguém, de modo a desarrochá-lo do aperto que sentia, e partiu.
É preciso explicar que não era recente sua dificuldade de lidar com o balé de sua amada, que já o dançava, diga-se, desde antes de se conhecerem. Muito menos que a tempestade se iniciara naquela tarde-noite de ensaio geral cujos momentos derradeiros acabei de narrar. E tampouco o problema fosse o balé em si. O problema era mesmo o “pas-de-deux”. Quando soube que ela iria dançá-lo, aí sim passou-lhe a ser um tormento; para ela, a luta pela mantença de um prazer cujo preço estava se tornando muito caro. Balé passara, então, a ser sinônimo de desavença, crises de ciúme, falta de paz, desgaste do amor. Ao menos não houvesse o “pas-de-deux”...


Na verdade, não suportava a ideia de outro homem a tocá-la, a envolvê-la nos braços enquanto deslizassem sobre um tablado ao som invariavelmente romântico da música escolhida para embalá-los, via de regra sedutora e sensual. Muito menos que isso se passasse durante vários meses, dezenas de semanas, inúmeros dias, incontáveis horas, inimagináveis eternos minutos de ensaio, contabilizava. “Não! Definitivamente, não aguento!”, dizia num misto de revolta e sofrimento à bailarina tão amada e ao mesmo tempo de coração tão apertado, talvez dividido, em mais uma das cada vez mais frequentes discussões que travavam a respeito.
Antes, antes mesmo do final trágico involuntariamente patrocinado pela indisciplinada alça, já houvera percebido que a peça inferior do maiô de sua amada — pois cavada que surpreendentemente o era, e à vista porque imediatamente abaixo do prato da fantasia de sua bailarina — deixava à mostra boa parte de suas pequenas e firmes nádegas adolescentes — certamente mais brancas do que os ombros —, enevoadas, felizmente embora, pela meia, cor da pele, a com elas confundirem-se, virgens à visão mundana que eram.
E aí já sofrera por demais, a quase sentir-se desfalecer para não ver o quadro que até então era a razão de sua aflição, a dor que só um rapazola — que ainda não conseguiu domar os instintos de sua espécie e sexo — pode sentir. Sofreu! Ah, sofreu! Penou enormidade quando olhou para as miseravelmente encobertas nádegas seminuas da amada, agora inaceitável e certamente sujeita aos olhos gulosos da plateia masculina (imaginava, sob o compasso violento do coração inconformado), especialmente dos conhecidos e desconhecidos adolescentes que, como ele, assistiam ao espetáculo.
Faltou-lhe ar, finalmente — e aí chegamos lá ao início dessa história, no que para ele se traduziu o clímax mesmo da tragédia —, ao perceber a fina alça de suas vestes libertando-se e indo repousar bem longe do ombro que a amparava, como a libidinosamente permitir que seu viçoso seio juvenil, tal qual flor que desabrocha, pudesse libertar-se das tênues amarras que o continham e mantinham sob virginal segredo, e viesse, ele também — talvez ambos, fosse-lhe a sorte bruxa cruel e desalmada —, às luzes que a acompanhava enquanto deslizava solene, elegante e graciosamente sobre o cúmplice palco que a tudo permitia. Não bastasse o que já lhe dilacerava a alma, aquela música a penetrar em seus ouvidos, em sua pele, seus ossos, disputando em si mesmo espaço físico e espiritual com a dor que o ciúme lhe provocava... Clareia... A luz do dia a contemplar teu corpo, Sedento, louco de prazer e desejos ardentes...
Foi-se! Sem mais conseguir suportar a dor que se lhe assemelhava a lança cruel que estivesse a traspassar seu peito e castigar sua alma, largou a máquina fotográfica trazida (olha, só) para registrar os melhores momentos da dona de seu coração, e saiu do teatro sem olhar para trás, mas torcendo, não vou mentir, houvesse sido por ela visto.
É que de um lado havia o ciúme e a dor por este provocada; de outro a insuportável ideia de perdê-la. Vejam só o dilema de nosso apaixonado herói!... Quer dizer: ia-se, mas queria ficar; desejava não mais vê-la, nunca mais, mas não aguentava imaginar a vida sem ela.
Assim, nada mais fazia do que imolar-se com esses sentimentos que teimavam em perturbá-lo, como só os apaixonados enciumados sabem fazê-lo. Sofria quando sabia, e fazia questão de lembrar, houve as aulas, os ensaios que naturalmente antecediam (e antecederam) aquele dia de ensaio geral, e sofria quando então imaginava os dois a dançarem, repetidas vezes, entre erros e acertos, o que somente era dor menos lancinante à míngua do testemunho; o seu. Pouco importava que o parceiro da dança não apresentasse comportamento minimamente másculo; era do sexo masculino, a tocá-la com o romantismo que a música teimava em imprimir, o que bastava.
Você já deve ter percebido que nosso amigo ama. Ama e sofre, como esta história já é prenhe de afirmar a você, leitora e leitor. Não! Não o julgue, partindo sofregamente em defesa da pobre bailarina — que nada mais fazia, reconhece-se, do que o seu ofício, ainda que gratuito, sua arte, sua técnica. Não o faça antes, ao menos, de pelo menos sopesar o tamanho do amor que lhe devotava nosso sofrido amigo. E sem olvidar que a exposição do corpo seminu da mulher-menina que amava, os carinhos que a dança e a música impeliam — talvez obrigassem —, fossem nela realizados por seu par; tudo isto lhe era difícil compreender e aceitar. Era um jovem homem, com sentimentos e emoções masculinas ainda selvagens, tais quais aquelas.
Encontrou-o sentado sobre pequena e baixa muralha situada próxima à casa de espetáculo, de onde se via toda a cidade, mas não vou escamotear: diante de si só as cenas que acabei de tentar narrar-lhes com a maior precisão e detalhes possíveis.
— Oi... Onde você estava? Procurei tanto... Quando acabou o ensaio não o vi mais... Gostou? — perguntou-lhe, desconfiada e em parte realmente interessada em sua opinião e aonde ele havia estado; noutra, tentando imprimir um sorriso que pudesse disfarçar a percepção evidente, para si própria em primeiro lugar, que algo não estava bem com seu amado e, principalmente(!), que ela era a causa.
Não sabia se ficava feliz ou com mais raiva por sua voz já tão perto, e por sabê-la ali com ele, tendo vindo atrás dele, havendo procurado por ele tão logo acabou a cena. Sabia que fora praticamente de imediato, calculou, porque pouco mais de cinco minutos haviam passado desde então. Naqueles poucos segundos em que ouviu sua voz pôde perceber a respiração dela ainda ofegante, seu cheiro doce de suor misturado com o da fantasia (maldita fantasia!), sua saudade... Mas sua vinda não se mostrara suficiente para extirpar a dor, a vontade de não estar vivendo aquilo, de nada daquilo ter acontecido. Sentia raiva dela, sim. Muita raiva, mesmo. E não sabia nitidamente — porque ainda extremamente envolvido com a ira provocada pelo ciúme —, mas certamente, senão feliz — muito longe disso, escritor! —, estava mais confortado pela demonstração de importância que percebera dela para com ele e, principalmente, com o amor que reciprocamente sabia sentiam.
Sim, nesse ponto me cabe não deixar dúvidas: ela não o amava menos. Na verdade, era completamente apaixonada por ele. Em suma: ele aparentava mais, aqui, porque estava a sofrer por ela (e por eles), e a história foca o drama tomado sob esse foco. Ela aparentava menos, porque naquela tragédia o seu papel, involuntário — e talvez injusto, vá lá —, era de algoz; o dele, de vítima.
— O que houve, amor? Porque não me responde? Sequer me olha... Fala alguma coisa...
Só o silêncio como resposta. O olhar para frente, sentado sobre o muro, as mãos ao lado do corpo, amparando-se na pedra fria, os pés cruzados pendentes sobre o ar. Percebia, de soslaio, seu olhar preocupado. A vontade dela era de abraçá-lo, beijá-lo, reconfortar-se em seu ombro e aguardar. Mas tinha medo de ser rejeitada fizesse algum gesto de carinho.
Após longa espera: — Vai ficar assim, mudo, como se nem notasse minha presença?
— Como você quer que eu esteja? Como posso estar feliz se minha namorada, a garota que amo, acaba de viver um clima de amor e sedução, e o sujeito, não bastasse, é um aproveitador? — respondeu, enfim, com o exagero próprio dos tomados pelo ciúme.
— Aproveitador? Como assim?
— Não percebeu que ele nem se dignou a recompor a alça de sua roupa que caíra?
— É... Percebi... Mas acho que ele nem percebeu, amor... Devia estar tão envolvido pela dança... Não por mim, garanto.
Novo silêncio.
— Precisava ser a roupa mais devassada?
— Tem razão... A costureira da escola errou... E tinha que fazê-lo justo com a minha! Arre! — explicou, quase revoltada com essa, digamos, falta de sorte.
Sabia que em poucos minutos seus pais estariam a chamá-los para se irem a casa. Tentava resolver antes, para não se separarem com esse clima ruim. Amava-o tanto, pensava. Entendia-o, mas também se sabia não fazendo nada indigno. Compreendia, porém, a dor do ciúme que sentia, ainda que contra si e contra sua segunda paixão — se é, caros leitores, que posso traduzir assim, hierarquicamente, seus sentimentos, idênticos por serem ambos paixão, mas tão diversos quanto ao quê e a quem lhes eram devotados, que, força desta distinção inevitável, tornavam-se também distintos.
Passados alguns instantes — a si pareciam intermináveis —, pousou sua delicada mão (estava fria) sobre a dele, que não a tirou. Instantes depois, pensou ter ouvido a voz de seus pais ao longe, chamando-a. Ouvira, mesmo, ao percebê-la mais perto. Lamentou-se, pra si mesma. Levantaram-se. Tratou de segurar a mão dele, que por força do gesto de se levantarem havia se soltado da sua. A mão dela estava agora aquecida — e não tenho a menor dúvida, caros leitor e leitora, a quentura se devia à paixão que ali se via transmitida, de um para o outro ser, num ir e vir frenético, inversamente proporcional aos passos lentos que lhes imprimia o movimento indesejado de voltarem à realidade — que não era a deles —, paixão que aquece o coração, e principalmente, ali, acalentava a mais fina dor.
Explicações dadas aos pais — desculpas, na verdade, pois sem qualquer apego ao que de fato havia acontecido —, que, por sua vez, pareciam entender que houvera ali uma pequena tempestade, a despeito da noite quente do nordeste brasileiro naquele verão de meados dos anos 1980, entraram no carro, ela sem desgrudar da mão dele, ele sem esforçar-se para dela rebelar-se. À exceção de um comentário ou outro de uma mãe orgulhosa do papel desempenhado por sua doce bailarina, tão jovem ainda, respondidos com heroico esforço de parecer atenciosa e alegre, e de um olhar de um pai com contida curiosidade e ponta de preocupação pelo espelho retrovisor, seguiram viagem. Ao fim, percebia-se até se tendo distraído pelo caminho, certamente pelo calor que vinha daquela mão que o compreendia e ao seu amor doído.
Chegaram primeiro ao seu destino. Despedidas realizadas, preparava-se para deixar o carro quando sentiu o aperto mais forte em sua mão, o abraço delicado em seu rosto, e aquela voz a dizer-lhe, num sussurro, com os lábios bem próximos ao seu ouvido: Vai dar tudo certo. Amo-te. Obrigada. Ele desceu.

______________________
Tb pub no jornal GAZETA DE ALAGOAS, Caderno SABER, ed. de 04/01/2014, domingo