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Pense numa menina linda! Era um pitéu, um filé, uma
gata, uma coisa, uma..., sei lá, a mulher era demais, me’irmão! Falando sério.
Sem exagero. A rainha daquela empresa em Maceió. E a circunscrição do seu reinado é porque
era aqui nascida e aqui trabalhava. Mas disputaria esse título nobiliárquico
natural em qualquer lugar deste País, quiçá do mundo. Ôxe, poderia dizer, até,
do universo! Duvido alienígena mais bonita. Descomedimento, não! Juro! Mas me
vou abster de descrevê-la. Cada um de vocês — caro leitor ou leitora que se
esteja prestando a ler o que narro — que imagine alguém que pudesse provocar
esse estupor de admiração estética que acabo de alardear. Certamente, não
estarão longe do desenho harmônico que a compreendia.
Mas, como nem tudo é perfeito..., era chata. E, aí,
vou fazer o mesmo apelo dantes: pense numa menina chatinha! Metida, a figura.
Há quem entenda sua beleza justifique assim fosse. Mas não para Sandoval. Sei,
sei que o nome do cabra, por sua vez, é meio feinho, mas o sujeito era tido
como bonitão. Não se engane. Quem vê cara, não vê coração. Ou, adaptando o dito
popular às circunstâncias: quem só vê o nome, não vê o dono. Não era, porém, em
matéria de beleza, uma versão masculina de Soninha (assim a chamavam). E, se
era, o defeito é meu, que não sou especialista nessa ciência.
A vida da bela (e presunçosa) jovem era comum.
Ingressara, há pouco mais de dois anos, por concurso, naquela empresa pública. Formada
em Direito, nunca exerceu. Graduou-se porque queria um título e desejava
(talvez nem deseje mais) passar num concurso público ligado à área jurídica. Nada
diferente dos anseios de grande parte da população juvenil do País. Porém, se
não despertava admiração por sua essência, também não era execrada por possuir
defeitos relevantes. Salvo a prepotência, notoriamente decorrente da
consciência de sua beleza e, naturalmente, do mau uso dessa percepção. Em suma:
uma jovem normal, não afeita a maldades. Mas era metida. Que era, era.
Ele, como querido por muitos, naturalmente se via
invejado por outros tantos. Afinal, além da boa aparência era inteligente,
carismático e trazia (e observava) bons princípios éticos. Mas era machista.
Não no sentido daquele que quer levar vantagem e explorar as mulheres. Masculino,
quero dizer. Macho. Exatamente o contrário de feminino ou de fêmea. Deu pra
entender? Não? Hummm... Deixa ver... Pronto. Ter algo com uma mulher que acabou
de beijar vários homens numa balada, por exemplo, não era com ele. Nem pra
beijar queria: além do medo de pegar “sapinho”, tinha nojo. Sentiria como se
estivesse beijando a boca de outro homem. Por tabela. Percebeu? Outros, decerto
machos também (e vou afirmar o contrário?), não fariam essa reflexão. Até achariam
o máximo compor com as demais bocas que naquela já pousaram. “Beijei vinte”, “beijei
dez”, e por aí afora. Mas ele, não. Tá certo, caro leitor ou leitora adepto da
beijação. Entendo sua revolta. Mas ele assim sentia e pensava, ora! Fazer o quê?
O cara tinha direito, né não? Não se indisponham com ele. Era boa pessoa.
Afirmo.
Agora, deixemos como está e fiquemos por aqui. Acho
que a descrição feita, dum e doutro, embora silente em detalhes físicos, é
suficiente para vocês terem uma idéia razoável de nossos heróis.
De qualquer sorte, fosse como fosse a antipatia
sonsa da Soninha, o fato é que Sandoval se tinha com ela impressionado e
mantido o interesse por aquela miragem, mesmo após vir a saber da sua, digamos,
não-virtude. Também, não é pra menos. Vou nem dizer o porquê, pra não ser
repetitivo. Tá, eu digo. Tava linda demais, a moça. E, pra completar, aquelas
músicas de carnaval das antigas (frevos e marchinhas) — que o remetiam aos
carnavais de clube de sua adolescência, quando vinha do interior passar o
reinado de Momo na Capital, hospedando-se na casa de parentes — davam um tom
nostálgico e levemente romântico àquela concorrida noite carnavalesca da
cidade. E o impregnavam. Ela, embora somente houvesse participado dos chamados
carnavais de clube, com suas orquestras de frevo e bandas, ainda criança, sentia
um imenso prazer em participar daqueles festejos, tão distantes dos axés da
atualidade. O quadro, assim, estava a desenhar-se: uma linda mulher, um clima de
saudade e romantismo, uma vontade, desconhecida embora, de conhecer o amor. De
ambos. Claro, eu disse que ela era metida, não que não pudesse se apaixonar.
Assim que chegara, a viu. Foi, talvez, o que se diz
ser amor à primeira vista. Ela o notou, também. Mas rapidamente. De soslaio.
Tão de leve que Sandoval não conseguiu sequer ter uma idéia segura disto. Mas o
viu, sim. Asseguro. Tratou logo de perguntar quem era aquela beldade.
Esclareceram-lhe e a sua fama de menina metida. Tentaram dissuadi-lo. Alguns por
amizade, outros por inveja. Medo de que Sandoval conseguisse o que tantos
apenas sonhavam ter.
A verdade, todavia — e sinto-me obrigado a
esclarecer o(a) leitor(a) amigo(a) —, é que Sandoval não causara em Soninha a
mesma sensação. E se sim, ela não deixara antever nem pra mim, que lhes conto
esta história e deveria sabê-lo, na qualidade de narrador onisciente e
onipresente. De qualquer maneira, quando eu chegar ao fim do conto a minha
ignorância não terá o menor relevo.
Também não posso deixar de narrar que Sandoval,
além de orgulhoso (aquela história do cabra macho, lembram?), apresentava muita
cautela para abordar uma mulher por quem se encontrasse seriamente interessado.
Era, nesse tema, um tímido. E a timidez — dizia para si mesmo —, se o privava
de alguns vôos, ao menos o protegia de outras tantas quedas. Mas, não se engane,
o receio não chegava a abortar suas pretensões. Tinha medo. De um fora, de ser
humilhado. Mas não a ponto de paralisá-lo.
Assim, à míngua de amigos comuns que os
apresentassem, um ao outro, avaliou que a melhor abordagem seria chamá-la para
dançar. Quando? Aí são mais quinhentos. Sabedor, já, de sua fama, e como
continuasse em seu pedestal, resolveu não lhe dar a mínima. Apenas fazer-se
visto por ela. Finalmente, percebeu que ela o vira. E o olhara. De relance, é
verdade. Mas o fez algumas vezes, quando imaginava que ele não fosse perceber.
Estava, assim, se dando por satisfeito. Até então.
Os minutos — ou eram as horas? —, entretanto, se
passavam. Nem ele ia dançar, nem ela. Ao revés, flagrara Soninha virando o
rosto para um pretendente que se havia aventurado a convidá-la a dançar. E o
fez com absoluto desdém. Desprezo, mesmo. Aquilo ferira Sandoval por dentro.
Não que não houvesse gostado de ela não ter ido dançar com o sujeito. Mas
detestava humilhação. De resto, o sentimento de solidariedade à vítima viera
juntar-se à antipatia, que também já começara a nutrir, e ao inicial
enlevamento, que, de qualquer sorte, ainda perdurava. Tudo num aparente
paradoxo. Vai-se entender o amor, né leitor(a)?
O fato é que, ao tempo em que se via encantado pela
moçoila, também percebeu dedicar-lhe certa raiva. Àquela menina, pudesse —
pensava —, aplicava-lhe uma lição. Gostaria de lhe dizer que ela não era melhor
do que ninguém, apenas porque bonita, que ela tinha que respeitar as pessoas,
tratá-las com educação, essas coisas. Totalmente apaixonado! Para tanta ira
contida, só mesmo tomado pela paixão.
Tomou o último gole de cerveja. Indagava a si mesmo
se chegara o momento de chamá-la para dançar. Ela ou qualquer outra que
aparecesse no caminho, já que considerava a hipótese de levar um fora daquela
pretensiosa, apesar dos olhares agora mais amiúde trocados. Resolveu acender um
cigarro. Chegou a tomá-lo em sua mão, pô-lo entre os dedos, mas quando ia
acendê-lo, isqueiro ainda no bolso, a orquestra começou a tocar sua música
preferida. Não podia esperar mais. Inclusive, já estava ficando tarde. Ou cedo,
considerando-se ser, já, adiantada madrugada. Partiu, resoluto. Medo arrefecido
pelo incentivo dos olhares furtivos correspondidos, e pelas cervejas que
ingeriu.
Soninha estava recostada em uma pilastra, ora
observando o movimento do salão, ora conversando amenidades com alguma colega.
Parecia distante, em
sua realeza. Foi quando percebeu a vinda de Sandoval em sua direção. Seu
coração começou a bater forte. Não disse que ela já se havia enamorado também?
A distância entre ambos foi encurtando, e ela se aperreando. Quando ele estava já
se aproximando e, abrindo-lhe um sorriso, parecia vir convidá-la a dançar —
para o quê mais iria até ali, àquela altura, não para isso? —, Soninha, antes
mesmo que ele balbuciasse qualquer palavra, antecipou-se-lhe e dirigiu-lhe um
gesto contundente de que não queria dançar, acenando em sua direção, negativamente,
ao tempo em que deixava transparecer em sua face um misto de expressão de
enfado e intolerância.
Sandoval não podia acreditar. Pudesse voltar, o
faria. Mas já estava quase esbarrando na garota quando recebeu o soco. Sim,
leitor, desculpe-me, mas foi como um murro. Nessa hora, até eu, que nada faço a
não ser lhe contar essa história, solidarizo-me na sua humilhação. O que
poderia fazer? Aceitar a negativa, que mais parecia uma reprimenda pelo
desaforo de ter tido a ousadia de lhe dirigir a palavra que, aliás, sequer foi
dita? Foi então que lhe veio a luz.
— Como? Desculpe, mas vim perguntar se você tinha
fogo para acender o meu cigarro — disse, mostrando-lhe o cigarro apagado entre
os dedos. Soninha sentiu as pernas fraquejarem, a face enrubescer. A expressão
de cansaço e desdém, que havia um segundo ostentava, transmudara-se num sorriso
amarelo. Não sabia o que dizer. Balbuciou um pedido de desculpas.
— Pensei que você vinha me chamar para dançar. Não
sei dançar essas músicas... — concluiu, com um sorriso amarelo, visivelmente
transtornada. Nada passou desapercebido por Sandoval, que a esta altura sentiu
voltar o chão aos seus pés e o domínio da situação.
— Bom, então, já que fósforo vejo que você não tem,
nada impede que dancemos, ora! Vamos lá? Eu também não sei. Aprenderemos um com
o outro — disse-lhe Sandoval, expressando a maior simpatia que pôde, com um
largo sorriso nos lábios. Soninha, completamente desnorteada, sem forças para
resistir, e tentando remediar o vexame por ela própria açodadamente causado,
aceitou o convite.
Todos olhavam perplexos. Os verdadeiros amigos,
torcendo por um e outro, cheios de admiração. Os nem tanto, babando de inveja.
Aliás, a bisbilhotice foi tanta que, num piscar de olhos, o salão ficou repleto
de curiosos amigos comuns, a dançar ao redor do casal, de modo a não perder um
só detalhe.
Sandoval não se deu por satisfeito. Lembram-se que
sentira um certo desejo de vingar seus pares, horas atrás? Agora, sentia com
ainda mais fervor a vontade de lhe dar uma lição, que pusesse abaixo aquele
nariz empinado de uma vez por todas. Deixou passar algum tempo — algo parecido
com a metade da música, já que não podia se arriscar a ser convidado a sair do
salão por Soninha, tão-logo findasse a que estavam dançando —, afastou um pouco
mais o seu corpo do dela e, escancaradamente, enfiou a mão no bolso da camisa,
de lá tirando seu isqueiro. Acendeu o cigarro, com ele, na frente dela. Tragou.
Tudo sob o seu olhar atônito. Ele sorriu, enquanto soltava a fumaça para o
lado. Soninha, que há tempos procurava o chão ilusório de rainha em que
acostumada a pisar, sentiu-se literalmente planando. Tentando um sorriso, agora
já amarelo pálido, disse-lhe, em tom de brincadeira:
— Cachorro — ao que ele lhe respondeu, sempre sorrindo:
— Tô cansado. Pensando bem, quero dançar mais não. Vamos
sair?
— Está bem — disse-lhe. E saíram, cada qual para o
seu lado, sob o olhar estupefato dos presentes.
(..........)
— Menina, a noiva está linda, deslumbrante mesmo!
— E que simpatia! Que sorriso! Vou querer um
vestido assim no meu.
— Quanta felicidade desses dois... hummm...
— Ai, ai, que inveja...!
— É o casal mais bonito da cidade, sem sombra de
dúvida.
— Olha o guardanapo da recepção! Que mimo: S &
S.
— Soninha e Sandoval.
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Escrito em fev.2007
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