terça-feira, 4 de junho de 2013

A árvore cupido

Tb pub. na Rev. da Assoc. Nac. dos Adv. da CEF
*Também pub. na Gazeta de Alagoas, Caderno Saber, out/2013

Não era um pé de laranja lima pra chamar de meu, embora eu já houvesse tido vários pés de laranja lima, sem de pés de laranja lima se tratarem de fato, suficientes embora para imitar a personagem do José Mauro de Vasconcelos nos meus devaneios e fantasias de criança que lera o livro e assistira à novela, não necessariamente nessa ordem. Mas não era. Até porque árvore frondosa, que diferentemente de um pé de laranja lima me permitia subir em seus vários galhos grossos e fortes até bem alto, tão alto que quem passasse pela rua onde eu morava poderia não me ver, bastava que eu assim desejasse. Inclusive ela.

Por essa época, eu nem era um pirralho do tope do garoto de “O meu pé de laranja lima”, tampouco um adolescente. Tava naquela chamada fase abestalhada. Isto. Era só um bestão[1], como a gente diz aqui em Maceió. Tanto que a razão do meu viver, enquanto prazer, além de rachar[2], jogar ximbra[3], soltar peão e jogo de botão era me apaixonar pelas meninas do colégio. Ou de onde viessem. Foi lá que a vi pela primeira vez. No Imaculada Conceição, na Pajuçara. E me apaixonei de cara. Claro! Aliás, eu e certamente a metade dos meus colegas de escola.

Aqueles incríveis olhos azuis, aquela tez alvinha que parecia ia rasgar-se ao mais leve esgarçar, de tão fininha que era, os cabelos cor de ouro... O que mandei de bilhetinho dentro do caderno dela, de chiclete dentro da sua bolsa... Sem contar os passeios de bicicleta pela frente de sua casa na esperança de vê-la, de um oi, um aceno, um sorriso, e até de algumas palavras (as perguntas já estavam prontas para essa hipótese, uma vez ou outra alcançada). Aliás, caro leitor, a casa dela ficava a menos de cem metros da do papai aqui! Ha-ha-ha! O que eu poderia querer mais?

O fato, porém, é que perto ou longe, disso não saía não. Nem no colégio, nem fora dele. Só me restava passar as muitas horas na velha árvore, onde ninguém podia me ver, trocando das mais doces às mais candentes palavras de amor com a minha lourinha imaginária, indo dos abraços aos mais tórridos beijos, todos praticados no âmago da minha fantasiosa cabeça.

Estava uma tarde num desses meus encontros com minha namorada, dirigindo-me ao mais alto dos galhos da minha amiga e confidente árvore, quando pela primeira vez em tanto tempo senti meu corpo desequilibrar a um passo em falso, distraído que estava com sua beleza. Juro! Nesse dia eu a desenhei em minha imaginação tão especialmente linda, que completamente embasbacado com o resultado não percebi que o último galho onde deveria apoiar o pé estava situado um pouco mais acima de onde calculei deveria fazê-lo. Só deu tempo de ouvir o barulho do galho sendo arranhado pela pressão que fiz com a perna, tentativa última de evitar a queda, e de sentir o banho de adrenalina por dentro.

Quando recobrei os sentidos já estava no hospital. Disseram-me que aterrissei sobre a capota de um carro que vinha passando pela minha rua. Embora o veículo houvesse amortecido a queda, caíra de costas, de modo que me machucara e ficara desacordado por algum tempo. O motorista, que para minha sorte passava com sua mulher e filha no exato momento em que despencava, socorreu-me e ligou para meus pais, que já estavam comigo quando acordei, são e salvo. No dia seguinte já teria alta.

Pela manhã bem cedo, acordei com muita fome e doido pra cair fora dali. Antes fui informado que a família que me socorrera deixara a filha sob os cuidados de minha mãe no hospital, para me visitar, enquanto iam ao trabalho. Soube que ela insistira muito, embora estivesse no horário da escola, porque estaria muito preocupada comigo. Era minha colega da escola, disse-me mamãe. “Qual o nome dela?”, perguntei. “Ih, não sei... Bom, você já vai saber. Seu pai foi buscá-la na porta do hospital.”

Por alguma razão que não me permiti nem sonhar pudesse ser, senti um rápido calafrio de ansiedade. Ouvi os passos de meu pai e de mais alguém. Jamais confundiria os passos dele em qualquer lugar onde eu estivesse. Uma leve batida (toc-toc), o movimento da maçaneta, um mínimo ranger de porta mal lubrificada — quase imperceptível para outros ouvidos menos atentos que não os meus naquele momento... A porta finalmente se abre por completo. Ela entra.






[1]Bobo, tolo

[2]Jogar bola, bater pelada

[3]Bola de gude