Impressionado.
Desolado, até, diria. Claro que, hoje, no noticiário, há coisas muito mais
chocantes. Crimes terríveis, realizados com inacreditáveis requintes de
crueldade, por exemplo. Tintos de sangue, ou de caneta. Mas não é sobre eles a
crônica. Nesse aspecto, aliás, tomados esses, pode-se dizer que o motivo que me
causou estupor é bem mais leve — nem a pau que vou dizer light.
Vê só! Tava eu, assistindo à TV, quando deu-se início a uma reportagem sobre enchentes em São Paulo, decorrentes das fortes chuvas de março. Registre-se que já vi e ouvi várias. Sobre enchentes, e sobre enchentes na capital paulista. Mas essa teve um toque que, não fosse trágico, seria hilário. Eita mundão, esse!
"Prestenção". No momento em que mostrava e narrava os estragos causados pela ira do nosso São Pedro (coitado, vai ver que nem é ele o responsável, e fica levando a culpa), eis que a repórter, com naturalidade inqüestionável, e enquanto apresentava-nos as cenas de árvores, destroços e automóveis sendo arrastados pela forte correnteza — o que naturalmente nos angustia, como não? —, informa-nos que alguns, digamos, rapazes estariam oferecendo ajuda às vítimas que naqueles veículos se encontrassem, no sentido de impedir que fossem levados pelas águas. Porém (a conjunção adversativa é minha; a repórter narra sem o “porém”), o faziam sob a condição da paga de R$ 10,00. E a reportagem prosseguiu, sem mais uma palavra sobre o novel negócio.
Nada! Nem um tom de surpresa ou reprovação, com o inusitado do serviço prestado pelos bravos mercenários, ela demonstrou. Para a repórter — não houve como sentir diferente quem a escutara (creio) —, estava tudo normal. Tava tudo bem.
Deus do céu, tem jeito mais não? Como é que pode ser natural alguém pedir dinheiro para impedir que o automóvel de um semelhante (e com o próprio dentro!) seja tragado por uma correnteza?! E contar o fato sem assombro, então?! Sou até capaz de ouvir a conversa deles. E o desespero das vítimas. Aliás, de uma maneira ou de outra, todos vítimas.
— Óia lá, véio, mais um carro de bacana (ou de remediado, ou de pobre, mesmo)! Tá quase sendo engolido pela água! Parece um barco. E o povo dentro, então? Tudo morrendo de medo... Que doideira... Hummm... Tive uma idéia, tá ligado? Aê, moral, por dez paus eu te ajudo! Quer?
— Claro! Por favor, por favor! Eu pago, eu pago! Socorro!
— Beleza, véio. Agora é só pedir pra São Pedro mandar ver, que não vai faltar mané pra gente tomar uma grana. Federal!
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Crônica publicada no jornal Gazeta de Alagoas, de 21/04/2007
Originariamente postada no antigo Blog do AnDRé fALcÃO, hoje Ponto Vermelho, em abr.2007
Foto em http://oquevaipelomundo.blogspot.com.br/
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