domingo, 11 de dezembro de 2016

Por dez paus, eu ajudo

Impressionado. Desolado, até, diria. Claro que, hoje, no noticiário, há coisas muito mais chocantes. Crimes terríveis, realizados com inacreditáveis requintes de crueldade, por exemplo. Tintos de sangue, ou de caneta. Mas não é sobre eles a crônica. Nesse aspecto, aliás, tomados esses, pode-se dizer que o motivo que me causou estupor é bem mais leve — nem a pau que vou dizer light.

Vê só! Tava eu, assistindo à TV, quando deu-se início a uma reportagem sobre enchentes em São Paulo, decorrentes das fortes chuvas de março. Registre-se que já vi e ouvi várias. Sobre enchentes, e sobre enchentes na capital paulista. Mas essa teve um toque que, não fosse trágico, seria hilário. Eita mundão, esse!

"Prestenção". No momento em que mostrava e narrava os estragos causados pela ira do nosso São Pedro (coitado, vai ver que nem é ele o responsável, e fica levando a culpa), eis que a repórter, com naturalidade inqüestionável, e enquanto apresentava-nos as cenas de árvores, destroços e automóveis sendo arrastados pela forte correnteza — o que naturalmente nos angustia, como não? —, informa-nos que alguns, digamos, rapazes estariam oferecendo ajuda às vítimas que naqueles veículos se encontrassem, no sentido de impedir que fossem levados pelas águas. Porém (a conjunção adversativa é minha; a repórter narra sem o “porém”), o faziam sob a condição da paga de R$ 10,00. E a reportagem prosseguiu, sem mais uma palavra sobre o novel negócio.

Nada! Nem um tom de surpresa ou reprovação, com o inusitado do serviço prestado pelos bravos mercenários, ela demonstrou. Para a repórter — não houve como sentir diferente quem a escutara (creio) —, estava tudo normal. Tava tudo bem.

Deus do céu, tem jeito mais não? Como é que pode ser natural alguém pedir dinheiro para impedir que o automóvel de um semelhante (e com o próprio dentro!) seja tragado por uma correnteza?! E contar o fato sem assombro, então?! Sou até capaz de ouvir a conversa deles. E o desespero das vítimas. Aliás, de uma maneira ou de outra, todos vítimas.

— Óia lá, véio, mais um carro de bacana (ou de remediado, ou de pobre, mesmo)! Tá quase sendo engolido pela água! Parece um barco. E o povo dentro, então? Tudo morrendo de medo... Que doideira... Hummm... Tive uma idéia, tá ligado? Aê, moral, por dez paus eu te ajudo! Quer?

— Claro! Por favor, por favor! Eu pago, eu pago! Socorro!

— Beleza, véio. Agora é só pedir pra São Pedro mandar ver, que não vai faltar mané pra gente tomar uma grana. Federal!
____________

Crônica publicada no jornal Gazeta de Alagoas, de 21/04/2007
Originariamente postada no antigo Blog do AnDRé fALcÃO, hoje Ponto Vermelho, em abr.2007
Foto em http://oquevaipelomundo.blogspot.com.br/

Nenhum comentário: