domingo, 11 de dezembro de 2016

Carta a Mário Goulart (um papo sobre a reforma ortográfica)

Meu caro Mário,

Vejo (e leio) sua missiva e tento, agora mesmo, assim atabalhoadamente, falar-lhe alguma coisa sobre o tema (o trema, que integra o tema, vem em seguida) — estou assoberbado de tarefas nesta segunda-feira feliz. Confesso, desde logo, não me ter sobre ele debruçado, sequer minimamente. Mais: nem de longe, nem de muito longe(!) — muito mais longe do que a distância que nos separa —, teria condições técnicas para falar com propriedade sobre a reforma ortográfica que se prenuncia. Assim, e até por isto, rogo-lhe desculpas pelo açodamento e inconseqüência (olha o TREMA, aí!!). O seu pedido, entretanto, é uma ordem. Você pediu, então arque (S/TREMA) com as conseqüências (de novo, o danado).

Falando em TREMA, meu prezado jornalista, nada me parecia mais inútil, mas mais charmoso. Distinção, “sacomé”**? O cara escrever com trema confere(ia) aparência de saber. É feito carro luxuoso em mão de pobre inconformado: satisfaz a si (ilusão) e à hipocrisia da sociedade, que teima em avaliar conforme as aparências. Bobagem rematada. Já vai tarde.

O HÍFEN, ah!, o hífen... Por que cargas d’água (ou de qualquer outro líquido menos nobre) não se foi às “cucuias”*** também? Para que “diabos” deixar aquele traço chato e separatista? Aliás, o HÍFEN, pra mim, tem um quê de preconceito, mesmo. É a revista grande que não aceita virar hiperrevista, tem que ser hiper-revista, e por aí vai. Veja, meu caro Mário, como a ausência do hífen diminui a força, por exemplo, de um anti-semita. Antissemita (sem o HÍFEN), é o que deve ser: se não uma peste em extinção, ao menos um desgraçado enfraquecido. Aliás, entre o TREMA (tem garbo, o trema, tem ou não tem?) e o HÍFEN, fosse pra escolher, ficaria com o TREMA, apesar de todas as críticas ideológicas com que o pintei lá atrás.

Finalmente! Finalmente as pobre k, w e y lograram entrar no precioso e seleto grupo, oficial, da língua portuguesa. Bom, não é pra qualquer letra, decerto, fazer parte do alfabeto da mais linda (e rica) língua. Mas confesso: sinto-me um pouco preocupado. É que temo signifique, a inserção das três letras em comento, menos um beneplácito nosso em relação a essas pobres excluídas, e mais uma constatação de nossa americanização subserviente e basbaquada (existe isto? Basbaquada, de basbaquice. Ou babaquice, como a gente popularmente diz).

O ACENTO CIRCUNFLEXO, dos crêem, dêem, lêem e vêem, e derivados, e das palavras findas em hiato “oo”, já vai tarde. Ora, ninguém diz crÉem (assim, com o 1º “e” aberto). Pra que, então, emprestar o som do “circunflexo” ao que já o tem por si? Vá-se fora, então (saudade deu-me, agora, do fôra – mas não é hora para reminescências).

Tampouco vou chorar uma lágrima pelo fim do ACENTO AGUDO nos ditongos abertos (e alguém fala assemblÊia, por acaso, para necessitar dessa agudeza redundante?), nem nas paroxítonas com o “i” e “u” tônicos, tampouco na maluquice dos GÚES. Afinal, o ACENTO AGUDO no averigÚe, por exemplo, jamais impediu que vez por outra eu ouvisse de um sábio locutor: averÍgue!, apazÍgue!, tudo assim, como se o AGUDO estivesse na sílaba imediatamente anterior.

Finalmente, minha única crítica, pelo menos por ora — enquanto não pensei melhor nos devaneios que acabei de escrever: tenho por princípio não concordar com a retirada do ACENTO DIFERENCIAL. Este, sim, tem uma utilidade prática notória. É certo que o sentido da frase pode não deixar dúvidas se você vai PARA lá, ou se você PÁRA, como vejo tenho que fazer já, já. Mas, pôxa, que coisa estranha escrever um verbo como se estivesse, ali, uma reles preposição. E comer uma pÊra sem acento? Não terá o mesmo gosto. Não terá.

Prezado Mário, se você, com sua argúcia, detectar algum equívoco de redação — bobagens há, a fole —, peço-lhe retificar, por gentileza. Fiz num fôlego, felizmente ainda com acento, pra gente não se cansar tanto.

Forte  abraço!

André Falcão de Melo
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(*) Mário Goulart é jornalista e escritor. Como jornalista, atua principalmente em jornais corporativos, de que é destaque o Boletim da Assoc. Nac. dos Advogados da CEF. Na literatura, destacam-se os infanto-juvenis Tio Herói (1999), que ganhou o Concurso 30 anos da FNLIJ, o selo Altamente Recomendável e os prêmios Jabuti de Revelação Literária e Açorianos (Porto Alegre), todos em 2000, e Pê da Vida (2000), indicado pela mesma FNLIJ para a Feira de Livros Infantil Bolonha 2001. Escreveu Também o "Livro dos Erros, Histórias Equivocadas da Vida Real" (2001), pela Editora Record, e uma biografia sobre o compositor Lupicínio Rodrigues.
(**) Sacomé = sabe + como + é.
(***) Cucuias = inferno ou qualquer outro recôndito indesejado, para onde desejar enviar algo de que você não goste.
Originariamente pub no blog Ponto Vermelho (www.blogdoandrefalcao.com), em set.2007
Foto em http://www.rodrigocmagalhaes.com/

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