quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

A saia e a bicicletinha

Era pra ser uma crônica apenas alegre. Até porque os fãs da harmônica canção transformaram um lamento, um lamento profundo, digno, verdadeiro, dolorido, romântico (principalmente), e justo(!), em motivo para festa, gracejos, trejeitos rebolativos provocativamente sensuais — quiçá até vulgares, para os mais empedernidos e moralistas — e razoável desvirtuamento da mensagem originariamente elaborada, notadamente de sua essência. Assim, nesse norte transformativo que culminou por se operar, a crônica deveria, por igual, ter um quê, também, de molejo, de coreografia maliciosa, de êxtase, de regozijo, de excitação, de carnaval.

Não posso, entretanto, enfatizar o rumo que o próprio e festivo público lhe deu — embora destinatário maior do verdadeiro protesto musical de que trato —, para fazer ouvidos moucos ao grito de dor, de irresignação, de agonia, de angústia, de quase desespero que é alardeado, cantado e em coro repetido pelos irresignados artistas criadores da composição que mais talvez tenha sido reproduzida em nosso carnaval. Não há, ali, apenas uma música. Há um brado de revolta e tristeza, um autêntico manifesto, uma declaração de amor, brilhantemente metafórica, por vezes. Uma canção genial.

Duvida? Pois continue a empreitada iniciada, amigo leitor, e analise se a razão está, ou não, comigo.

Pois bem, o que acontece é que a moça, inspiração ao artista que compôs a inteligentíssima música-manifesto (ele próprio o afirma, sem tirar nem pôr,ou melhor, de preferência tirando), sai de saia, e de bicicletinha (donde se presume, pelo diminutivo empregado, não é muito alta a garota, pois a bicicleta seria daqueles modelos de menor tamanho, ou então ela, ou o autor, nutre certa afeição pelo indigitado veículo de duas rodas, e aí o diminutivo seria uma forma de tratá-lo carinhosamente), mas, voltando ao que dizia, alude à uma peculiaridade presente no ato: é que uma mão vai no guidom e a outra tapando a calcinha. Vale dizer, conclusão primeira a que se chega: ela está a guiar a bicicleta, ou bicicletinha, como prefere, com apenas uma das mãos! Nessa premissa, já adianto, está o móvel de toda a belíssima composição. E o autor não demora a assim demonstrar. Observe:

Imediatamente após registrar que a moçoila está a guiar a bicicleta com apenas uma das mãos, já que a outra estaria tapando sua indumentária íntima, ele, demonstrando escancarada aflição, explicita-a: dá um arrepio quando ela sai pedalando, mas tem uma mão na frente que tá sempre atrapalhando, acho que ela tem medo do piriquito voar, por isso que ela não para de tampar.

Ora, além da explícita apreensão do compositor escancarar imenso afeto que deve nutrir pela rapariga — rapariga de Portugal, por favor, não a nordestina —, resulta induvidosa, até por isto, a carga de adrenalina produzida por e em seu apaixonado ser, resultante do receio, facilmente perceptível, de que venha a machucar-se a sua amada, força do pudico gesto de tapar sua misteriosa calcinha, como de segredo, aliás, deve estar mesmo protegida a cor de vestimentas que tais em circunstâncias assim. Nesse momento da composição, em que o romantismo faz-se marcante, não se pode deixar de ressaltar o cunho ecológico-metafórico emprestado pelo artista à tão poética quanto aflitiva circunstância que narra, fazendo alusão ao receio de que voe o periquito que estaria a moça a proteger com a mão que pudicamente tapava sua calcinha (periquito com “i”, conforme adotou e, ora, não tem nada demais: os grandes escritores o fazem). Um primor de construção literária.

Pois bem, dados os contornos do fato objeto de sua irresignação (a imprudente maneira da moça de guiar a bicicleta), e o receio incontido de que venha a machucar-se por essa renitência movida pelo pudor, e sem mais a suportar o sofrimento que o acomete, ele roga, em alto e bom som, secundado pelo coro que repete suas palavras, como que para ajudá-lo a ser ouvido pela imprudente menina: eu não aguento mais essa situação, vamos liberar geral, vamos tirar essa mão! E pede, quase a exigir: bota a saia e vem pra rua, na sua bicicletinha, eu quero ver a cor da sua calcinha(!), querendo naturalmente dizer à moça que ela pode, sim, andar pela rua de saia em sua bicicletinha, mas que o faça com segurança, com as duas mãos no guidão, nada importando, em nome do cuidado consigo mesmo, que apareça a cor de sua protegida indumentária, antes até instigando-a a deixá-la à mostra, para protegê-la de um acidente.

E é esse o mais emocionante momento da rica composição: o autor, em nome do amor que nutre pela moçoila — amor que vence, assim, o ciúme que o acomete, de que outros olhos possam desvendar o segrego tão intransigentemente guardado (a cor da calcinha da amada) —, não só abre mão de que ela proteja sua indumentária, como metaforicamente alardeia que quer vê-la e à sua cor, querendo na verdade dizer: esqueça-se disso! Dane-se o pudor! Escafeda-se o moralismo tolo! Que apareça sua calcinha! Raios partam meu ciúme de macho ofendido! Desvende-se-a aos olhos gulosos de outrem a sua cor! Que assim o seja, se queres tanto andar de bicicletinha em vestimenta inadequada à prática do ciclismo,... mas por favor, proteja-se guiando a bicicletinha com ambas as mãos!

Emocionei-me: seja pelo brado molhado em lágrimas do genial compositor, seja pela importância que essa canção ocupará na história de nossa música, seja pela valorização da mulher que lhe é ínsita, seja pelo enriquecimento cultural proporcionado a cada brasileiro, seja, principalmente, pela declaração de amor que desborda de cada palavra que genialmente a constrói e a transforma em verdadeira obra de arte. Clapt-clapt-clapt! Bravo!
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Tb publicada no Caderno SABER do jornal Gazeta de Alagoas, de 06/03/2010, e na revista da Assoc. Nac. dos Advogados da CAIXA - ADVOCEF
Foto: Editada a partir de www.fotosearch.com.br/UNN831/u21542598/

11 comentários:

Juliana Aguiar disse...

Meu Deus do Céu André. Depois de ler sua cronica (ensaio)até eu que tinha nessa música um apelo á vulgaridade estou refletindo pelo fato de o compositor ter feito essa música pra sua amada e nós que não conseguimos entender, obviamente ignorantes como eu, achando a musica de extremo mal gosto e chegando muitas vezes á mudar dr radio ou desligar o som para que não se poluísse meus ouvidos. Mas qualquer forma de declaração de amor , de demonstração de carinho é válida, srsr. Uma cronica muito bem elaborada. Parabens pelo texto

André Falcão de Melo disse...

Pra vc ver, Juliana, como a gente às vezes julga pelas aparências (ou pelo que não aparece, ainda que não apareça por uma mão que cubra o que é pra não aparecer, rs).
Valeu a visita e o comentário!
Obrigado!

Joyce disse...

"Poucos lêem por prazer. Menos ainda os que escrevem por prazer. Segundo Schopenhauer, a maioria dos escritores "vivem da literatura e não para a literatura". Raras são as vezes em que ambas são exercidas pelo mesmo homem."
Você é o exemplo dessa raridade!! Pq só você mesmo pra conseguir retirar tamanho significado dessa música tão singular(kkkkkkk)!

Beijos

André Falcão de Melo disse...

Êta exagero da gôta! (rs) Mas é bom de ouvir (ler), Joycinha! Um carinho nunca é ruim, né? Brigado! Brigado mesmo!

Káthia Oliveira disse...

André,
quer dizer que acha "Bicicletinha" pura poesia! ...|Fez-me pensar..Vou pensar depois comento.
Bjo
kathia_arq@hotmail.com

kathia_arq@hotmail.com disse...

Eu ri,viu! Estava no meio de um trabalho e não pude deixar meu comentário na hora. Segue então agora :
Quando vi este texto nas suas atualizações do Orkut não pude deixar de continuar a ler aqui...Pois é ,nunca imaginei ; “Bicicletinha” com todo entusiasmo e lirismo!
Tirando a questão gosto-nãogosto* da música ,foco num ponto; quando se gosta de uma coisa vê-se poesia, justificativa, encantamento em cada detalhe. Você discorre em prosa e doçura todo seu encantamento com o que ama; seja o time querido ou a música apreciada.Achei o máximo!
Abraço ,Káthia.
*..eu acho uó mas agora vou passar a ouvi-la com mais carinho.Fiquei até imaginando Caetano cantando.

André Falcão de Melo disse...

Não podia deixar de prestar essa "homenagem" à "sensacional" canção, né Káthia?
Agora, qto ao Caetano, fosse ele o irreverente lá dos anos 80, até seria possível tirasse uma onda, mas o pernóstico de hj duvido q tivesse senso de humor pra tanto...
Abc

Aida disse...

OI Andre!!!
Por morar fora nao conhecia a musica e depois de ler seu ensaio devo confessar que quando fui escutar a musica ja fui com um carinho mais especial..... vou dizer a musica e muito legal!!!!
Beijos
Aida

André Falcão de Melo disse...

Vc viu (ouviu) o q tava perdendo, Aída??? kkkkkkkk É poesia d+ da cta!!! kkkkk
Bjao! Valeu!!

CORPORALMENTE disse...

Parabéns!

Nunca pensei em parabenizar alguém que escreveu sobre essa música...risos

Você conseguiu envolver e arrancar boas gargalhadas...Muito bom!

Ganhou mais uma fã!

Primeiro, por saber que você valoriza e na sua sensibilidade "enxerga" a importância do trabalho que pretendo desenvolver...(Psicologia no esporte);)

Segundo, por conseguir prender minha atenção....diante de várias atividades que tenho p desenvolver, não costumo navegar sem rumo aqui...mas, foi por um acaso que encontrei seu blog e vejo que só irá somar!

Monteiro Lobato falou algo interessante e quero compartilhar com você..."Escrever é gravar reações psíquicas"...Será que o mesmo ocorre com você? Ou o contrário?!

Parabéns!

Kleidiana

André Falcão de Melo disse...

Muito obrigado, então, pela honra de tê-la como leitora!
Quanto ao mestre Lobato, ah! ele só pode estar certo, mesmo!
Valeu!