segunda-feira, 26 de novembro de 2007

Sempre é tempo de aprender

Conto
Fazia algum tempo que o conhecera num desses sítios de relacionamento existentes na internet. Quase 3 meses. Contava cerca de cinqüenta anos, enquanto ele passara dos sessenta. Ambos bem apessoados, embora o homem apresentasse um já avantajado abdômen. Mas tinha seu charme. Marcaram para encontrar-se em Maceió, cidade natal de Heloísa, onde ela reside e trabalha. É psicóloga. Antes, estivera no Rio de Janeiro, onde fora encontrar João pela primeira vez, lá conhecendo seus familiares. Começaram a namorar; agora, também na chamada vida real.

Assim, dirigira-se ao aeroporto. Chovia bastante. Torcia para que o vôo não atrasasse. Chegara com pouco mais de meia-hora de antecedência. O movimento não era grande no único portão de desembarque. Devia contar umas trinta pessoas, mais ou menos, entre adultos e algumas poucas crianças. Após constatar, no balcão da companhia aérea, que o vôo sofreria um atraso de cerca de uma hora, recostou-se próxima ao portão e, enquanto aguardava, ficou a observar o movimento dos que, como ela, esperavam. Sua atenção foi despertada pela presença de oito mulheres, sozinhas, quando muito acompanhadas de uma amiga ou parente. Uma despertou-lhe a atenção mais do que as outras. Era muito bonita, vestida elegantemente. A mais reservada de todas. Tinha um ar altivo, sem ser arrogante. Uma expressão séria, sem parecer antipática. Fazia acompanhar-se de um homem que, pelos trajes, parecia ser seu motorista. Todas, sem exceção, seguravam a euforia ou a ansiedade como podiam, mas não havia como disfarçar. Apresentavam expressões e atitudes tão semelhantes que não seria absurdo imaginar-se, até, estariam esperando a mesma pessoa.

Curiosa e comunicativa, Heloísa não tardou a puxar assunto com uma delas, Simone. Para sua surpresa, constatou que também estava a esperar alguém que conhecera na internet. Riram bastante da coincidência. Percebeu que a nova colega sentiu-se mais tranqüila após a revelação, afinal não era a única, nem estava só. Não passaram dez minutos e outra daquelas que ali estavam, tendo percebido o movimento de Heloísa e Simone e, principalmente, ouvido parte da conversa que travaram, apresentou-se a ambas, quase sôfrega, exclamando:

— Eu também estou a esperar um namorado que conheci na internet! — a gargalhada foi geral.

Não é fácil de acreditar, mas daí a pouco estavam as sete a conversar sobre a impressionante coincidência que as unia. Todas enamoradas por alguém que conheceram na internet. Todas aguardando seu respectivo namorado, ou quase-namorado, no aeroporto. E para não dizer que tudo era igual entre elas, duas — uma era Heloísa — já havia encontrado o seu par no mundo real.

Certamente, só este fato já daria, em si mesmo, uma boa história. Afinal, não é sempre que acontece, muito menos numa cidade ainda de tamanho médio, de sete mulheres se conhecerem a um só tempo, num aeroporto, esperando o mesmo vôo, e neste a chegada de seus namorados respectivos. O tempo parecia ter parado para aquelas pessoas. Ou conspirado, de algum modo, para que isto se desse. E era sobre o inusitado desse encontro que conversavam no início. Depois, o assunto passou a ser como cada uma conheceu o “seu”, em que sítio da internet, como ele é, se já viu foto, qual a idade, se tem filhos, o que faz e, claro, há quanto tempo “teclavam”.

Apenas uma — a que mais lhe despertara a atenção — manteve-se mais distante, com um olhar fixo e levemente aflito na direção do portão de desembarque, somente de vez em quando desviando-o para observar o burburinho criado pelas sete novas amigas.

Heloísa, apesar do divertimento que aquele inusitado encontro lhe causara, e do quão agradável estava sendo — bem-vinda distração para ajudar a passar o tempo e dominar a ansiedade pela chegada da aeronave —, não esquecera aquela estranha mulher. Coisa de psicóloga? Sabe-se lá.

— Quem é, ali? — perguntou, chamando reservadamente Simone a um canto.

— Logo que cheguei a vi e me pareceu tão apreensiva... Muito mais do que nós, até. Tem um certo ar de tristeza... — completou.

— Olha, soube há pouco, por uma das meninas, que ela também está esperando alguém nas mesmas circunstâncias que nós — respondeu Simone, para em seguida completar:

— Inclusive ela aparenta estar muito mais nervosa do que a gente. Talvez tenha brigado com o sujeito e esteja apreensiva para fazer as pazes. Ou nunca o tenha visto antes e está assustada. Sei lá...

— Também acho. Parece tensa, apreensiva demais. E me passa uma sensação estranha cada vez que a olho. Além disso, mantém-se sempre afastada. Humm... Bom, deixa pra lá. Vamos voltar às meninas — disse, aparentemente resolvida a esquecer o fato.

Para Heloísa, Simone e suas novas amigas não faltou mais assunto para passar o tempo. Cada uma que quisesse saber mais detalhes da relação da outra, como é natural quando juntas sete mulheres apaixonadas, ou em vias de, que acabaram de se conhecer num aeroporto, esperando seus homens que, igualmente, conheceram virtualmente.

Finalmente, é chegada a hora. O tempo já lhes fora francamente favorável em conspirar para que ficassem juntas, solidarizando-se umas com as outras, enquanto aguardavam seus talvez futuros maridos. Mas o tempo não espera. E, assim, finalmente a bela voz feminina da funcionária do aeroporto anuncia a chegada do tão esperado vôo. Pouco mais de uma hora de atraso. Ainda chove muito.

Heloísa sente um frio na espinha. Surpreende-se consigo mesma, por tanta expectativa em ver João de novo. Percebe que a euforia descontraída das novas amigas, embora misturada a razoável ansiedade, deu também lugar a expressões de angústia contida e, em algumas, indisfarçável medo. Olha, automaticamente, para a mulher solitária. Quase de soslaio. Ela estava imóvel. Não conseguiu sequer identificar sua respiração, por algum movimento do peito ou abdômen. Por um momento achou que fosse passar mal. Mas logo voltou suas atenções para João que, a essa altura, casaco de couro preto pendurado displicentemente em um dos braços, a outra mão segurando uma bolsa aparentemente acondicionando um laptop, acabara de ingressar no grande salão de desembarque.

Um a um, os passageiros dirigem-se à esteira rolante em busca de suas bagagens. Surgem os primeiros cumprimentos. De longe. Acenos. Alguns efusivos, outros tímidos, a maioria envergonhados tentando aparentar naturalidade. Heloísa percebe o coração bater mais forte. Olha João de cima a baixo, tentando enxergar alguma possível mudança física, curiosa como são as mulheres. Tenta controlar a euforia. Não enxerga mais ninguém ao redor. Está apaixonada. Vê-se adolescente. Estranho as pessoas se sentirem adolescentes quando estão apaixonadas, pensa. É como se esse sentimento fosse um privilégio exclusivo daqueles. Bah! Afastou o pensamento preconceituoso.

Apanhada sua pequena mala, João vem puxando-a pela alça, fazendo-a deslizar sobre as rodas nela acopladas, na direção da porta que o separa de Heloísa, enquanto o sorriso largo deixa escancarado o prazer que sente por estar ali, por amá-la, por em breve poder tê-la nos braços. Os segundos em que o fiscal do aeroporto compara o número do bilhete da bagagem com aquele constante no ticket em posse de João parecem uma eternidade. Finalmente, alcança Heloísa. Abraçam-se e beijam-se. Com alguma timidez, mas carinhosamente.

— Heloísa, este é Francisco. Francisco, esta é minha nova amiga Heloísa. E este é o namorado dela, João. Como nós, e como todas aqui, veja ao redor, conheceram-se em sítios de relacionamento na internet — disse Simone, enquanto se divertia com a expressão de surpresa de seu par.

Sucederam-se apresentações, risos, abraços, apertos de mão. Todos alegres, alguns desconfiados, examinando-se mútua mas discretamente. Não tardou, iniciaram um ensaio de combinação para encontrarem-se num barzinho, à noite, de modo a comemorar essa incrível coincidência.

De repente, Heloísa lembra-se da mulher que por algum tempo tanto lhe despertou a atenção. Olha ao redor, mas não a encontra. Não há mais ninguém no salão de desembarque. A esteira rolante está parada. Será que já foi?, pensou. Sabe-se lá porque, pede licença aos demais e dirige-se ao balcão da companhia aérea, puxando João pela mão. Ela está lá. Gesticula muito, visivelmente aflita. O homem que parece ser seu motorista mantém-se a uma prudente distância. Pede, então, a João que aguarde um pouco junto aos novos amigos — não sem explicar-lhe, ainda que rapidamente, que precisa falar com aquela senhora. Beija-o, com carinho, e se vai. Lá chegando, apresenta-se e diz que soube que ela também estaria aguardando alguém que conhecera na internet. Pergunta-lhe se está havendo algum problema e se pode ajudá-la em alguma coisa. Marina — este o seu nome —, visivelmente aflita e com lágrimas nos olhos, confirma a informação, mas explica que está preocupada porque aquele a quem aguardava não desembarcou. A funcionária da companhia fora verificar se ele estava realmente confirmado no vôo que acabara de chegar.

— Eu já estava com um estranho pressentimento de que algo não iria correr bem — disse Marina.

— Percebi. Desde que a vi você estava, mesmo, com um ar de preocupação, diferentemente de nós, que embora ansiosas, estávamos alegres e excitadas.

— E não sei explicar o porquê disto ter ... — ia dizendo Marina, quando foi interrompida pela chegada da funcionária.

— Sinto muito, senhora, mas não há nenhum Carlos Alfredo de Santiago entre os passageiros que desembarcaram.

A palidez de Marina foi imediata. Sua expressão era um misto de tristeza, decepção e dor. As lágrimas, antes contidas, escorreram sobre seu rosto sem sofrerem resistência.

— A senhora tem certeza? Por favor, veja novamente. Deve estar havendo algum engano — balbuciou.

— Sinto muito. Verificamos todos os nossos vôos vindos de Belo Horizonte nesta tarde, inclusive este, que fez conexão no Rio de Janeiro. Em nenhum constava o nome da pessoa que a senhora procura.

Heloísa agradeceu à funcionária, e temendo viesse Marina a passar mal, chamou-a para sentar-se e ofereceu-lhe um copo d’água, que correu para comprar, aproveitando o momento para dirigir-se a João e convidá-lo a acompanhá-la. João, porém, a tranqüilizou, dizendo que fosse amparar a amiga, enquanto iria acessar o seu e-mail através do laptop que trouxera, já que aguardava uma mensagem importante de trabalho.

Copo de água à mão, ofereceu-o, enquanto tentava acalmá-la.

— Não há de ser nada. Certamente houve um problema de última hora e o seu namorado deve ter pego um vôo de outra companhia. Ou não tenha podido vir, nem avisá-la a tempo, mas não tardará a fazê-lo.

— Não entendo. Estava eufórico. Dizia que era tudo o que mais queria. E eu seria capaz de jurar que dizia a verdade. Além do que, nunca havíamos nos encontrado antes.

— Mais uma razão para você não pensar em hipóteses pessimistas! Claro que aconteceu alguma coisa e não haverá de ser nada grave. Há quanto tempo vocês “teclavam”?

— Completou um ano em dezembro passado. Estava vindo porque me decidira a encontrá-lo, já que nos conhecemos, virtualmente, há exatos 14 meses e 20 dias, e amanhã é o meu aniversário.

— Pôxa! Vocês se conhecem há mais de um ano e nunca se encontraram?

— Pois é... Ele insistia, mas eu sempre negava. Sempre tive medo de que ele não fosse quem dizia ser. Depois tive medo de que não fosse o que demonstrava ser. Depois tive medo de que não fosse quem eu já achava que era. Sabe como são essas coisas de internet. O fato é que o medo sempre me paralisou. Mas depois de tanto tempo e de me certificar, de todas as formas, de que Carlos era quem eu pensava que fosse, acabei por ceder aos seus insistentes apelos e marcamos para nos encontrar. Mas, como você vê, ele não veio. E agora não consigo acreditar que tudo não tenha passado de uma ilusão.

— Realmente, foi tempo demais! Eu agüentava, não. Olha, no meu caso, em 30 dias nos encontramos. E eu é que fui ao Rio de Janeiro, onde João reside.

— Deus me livre! Não teria essa coragem! Para você ter uma idéia, no natal passado Carlos insistira como nunca para vir a Maceió. Além de ser natal, faríamos um ano juntos. Quero dizer, juntos na internet. Dizia não ter mais idade para esperar, que a felicidade não bate duas vezes à porta, que o tempo é implacável com quem o perde. Mas intransponível era eu com meus medos e rígidos princípios morais. Assim, resisti. Até que a proximidade de meu aniversário, além da insistência de Carlos, fizeram-me ceder.

— Bom, eu também tentei me certificar como pude, claro, sobre João. Conheci familiares seus pela câmera do computador, investiguei o endereço da firma onde trabalhava e por aí afora. Por exemplo, ele dizia que morava com uma irmã e que uma faxineira ia semanalmente ao apartamento. Sem ele saber, de surpresa eu pedia para vê-los e falar-lhes, ora com um, ora com outro. Liguei para o seu trabalho. Verifiquei os nomes das pessoas que atendiam. Enfim, procurei me cercar de alguns cuidados. Mas fui! Marcamos e fui!

— Nossa Senhora! Realmente, eu não teria tanta coragem. Um mês!

— Quando cheguei ao Rio, pedi que me levasse logo para o hotel, dizendo-me cansada. Marcamos para nos encontrar à noite, tempo suficiente para que, entre outras coisas, eu ligasse para o seu apartamento e falasse com sua irmã. Também para deixar precavidos meus familiares de que se eu não ligasse até uma certa hora da noite, eles me telefonassem. Tinham o meu telefone celular, o do hotel e o do próprio João. Não conseguindo contato, não relutassem. Chamassem a polícia. No fim, deu tudo certo. Agora é ele quem vem a Maceió e daqui a dois dias completamos 3 meses de namoro.

A chegada de João, Simone e seu namorado interrompe a conversa. Feitas as apresentações, não demorou cuidaram de se despedir. Ouviu um leve soluçar e sentiu um rápido tremor do corpo de Marina abraçado ao seu. Prometeu telefonar-lhe. Percebeu que a pouca cor que viu passar rápida e furtivamente por seu rosto, enquanto conversavam, fora-se tão rápido quanto veio.

Partiram. À noite, foram todos a um restaurante. Heloísa, suas sete novas amigas e seus respectivos namorados. Ela e Simone sentaram-se próximas uma da outra. Comentara, reservadamente, o que se sucedera com Marina, como a conhecera e o que ficara sabendo. O fato é que, por alguma estranha razão, Marina não lhe saía da cabeça. Tentou ligar algumas vezes para o seu telefone celular, ainda do restaurante, tal como prometera, mas o sinal recebido era de que o aparelho estaria desligado ou fora da área de alcance. Abortou a idéia de ligar para o número de sua casa, afinal já era perto da meia-noite. A solução seria aguardar o dia seguinte. Não demorou muito o jantar. A maioria estava cansada da viagem.

Já de volta, Heloísa e João puderam matar um pouco a saudade que sentiam. E nenhum dos dois podia, nem queria, esperar mais. Ali, durante aqueles momentos em que se amaram, esqueceu tudo. Simone, suas novas amigas, as coincidências impressionantes. Esqueceu, até, Marina. Sentia-se feliz. Agradecia ter vencido o medo e ido conhecê-lo. Lembrara-se do quanto fora difícil ter tido aquela atitude de desprendimento e coragem. Na verdade, nem sempre fora assim em sua vida. Assim, no fundo entendia Marina, a despeito de ter-se surpreendido com seu relato.

João não tardou a adormecer. Ela, ao contrário, sentia dificuldade, a despeito de que já perto de 2 horas da manhã e naturalmente deveria estar sonolenta. Lembra-se que a última vez em que olhara para o relógio de parede, em frente à sua cama, marcava 3:40 horas. Acordou por volta de 7 horas. João dormia a sono solto. Novamente tentou o celular. O mesmo sinal dado durante a noite. Levantou-se. Resistindo à tentação de telefonar, de imediato, para sua casa, tentou distrair-se ligando a televisão, enquanto tomava, mecanicamente, o café matinal.

Nem bem os ponteiros marcaram 8 horas, ligou. Atendeu uma empregada. Após se apresentar como uma amiga e perguntar por Marina, a resposta:

— Ela não passou bem ontem à noite e seus familiares a levaram ao hospital.

— Como assim? O que ela teve? A que horas foi isto? Ela está bem?

— Olha, não sei dizer muita coisa, não senhora. A única coisa que sei é que d. Marina já chegou do aeroporto muito pálida, suando frio e com os olhos inchados, como se tivesse chorado muito. Depois, fez alguns telefonemas e, de repente, desmaiou. Corri a chamar sua irmã, que mora no apartamento de cima e que felizmente se encontrava em casa. Ela levou a patroa ao hospital, com seu marido. Não sei mais de nada. Ninguém ligou até esta hora. Também estou preocupada.

Após saber para qual hospital possivelmente se dirigiram — a empregada ouviu comentarem o nome, minutos antes de saírem —, trocou rapidamente de roupa e foi encontrá-la. Antes, deixou um bilhete para João, explicando sucintamente o ocorrido, pedindo que a desculpasse pela saída atabalhoada e a aguardasse. Havia café pronto. Terminou com um “eu te amo”.

Meu Deus, pensava, o que teria acontecido? Qual o mistério, enfim, daquele homem não ter vindo? Ela parecia tão apaixonada. Até talvez mais do que a maioria das que lá estavam. Assim pensava, enquanto tentava estacionar o carro no hospital. Mas o que importava isto, agora? Sua ansiedade a impulsionava a deixá-lo na rua mesmo, inclusive à revelia da chuva que teimava em não passar. A Pegou-se pensando na razão para se impressionara tanto com Marina e sua história. É como se algo lhe dissesse que teria que conhecer o desfecho daquilo. Que não seria um desenlace comum. Que haveria uma lição a aprender. Ou a compartilhar.

— Por favor, a Sra. Marina de Alcântara. Soube que internou-se, ontem à noite, na emergência.

— Um momento. Sim. Apartamento 312.

— Como ela está. A senhora saberia dizer?

— Bom, ela chegou passando mal e recebeu os primeiros socorros. Agora está sob observação. Mais, não sei dizer.

— Obrigada — disse Heloísa, já subindo os primeiros degraus em direção ao 3° andar.

Quarto 300, 302, ... achei! 312. Ao lado, a uma distância respeitosa, o mesmo homem com roupa de motorista. Era ali mesmo, claro. Bateu à porta.

Uma mulher, aparentando não mais de 40 anos viera atender.

— Pois não?

— Por favor, é nesse apartamento que está internada a Marina? Sou amiga dela.

— Sim, é aqui mesmo. Queira fazer o favor de entrar. Ela está dormindo, mas daqui a pouco a enfermeira virá acordá-la para dar-lhe um remédio.

— Obrigada.

Bastou entrar no quarto, porém, Marina abriu os olhos. Ao vê-la, sorriu um sorriso triste, enquanto algumas lágrimas escorreram por sua face.

— Olá, amiga... O que houve, meu Deus? Liguei tanto pra você ontem à noite... Seu celular estava desligado ou fora de área, segundo a companhia telefônica. Pensei em telefonar pra sua casa, mas pelo adiantado da hora, desisti. Hoje, finalmente, consegui falar com sua empregada, que me dissera que você não se sentiu bem após um telefonema e viera cá ao hospital. Vim o mais rápido que pude.

— Obrigado pela atenção, Heloísa. Você é muito bondosa e atenciosa. Estou um pouco melhor. Mas adoraria estar, ainda, com aquela ansiedade, aquela angústia e aqueles pensamentos pessimistas. Foi o choque que tomei ontem à noite, após conseguir falar com Belo Horizonte, depois de horas de tentativa. A tristeza toma meu corpo e minha alma por completo. Descobri o que é desolação. E arrependimento. Mas vou encontrar forças para te contar, até porque é uma forma de expiação da culpa que sinto. Sente-se, por favor. Como está João?

— Está bem. Deixei-o dormindo e vim direto pra cá. Sou todo ouvidos.

— Muito bem — disse —, como iniciei a contar ontem, conheci Carlos há pouco mais de um ano. Foi amor à primeira vista, embora não nos vimos logo, claro. Passávamos horas a conversar pela internet, de início somente “teclando”. Após mais ou menos um mês, Carlos convenceu-me a comprar uma daquelas câmeras que são acopladas ao computador e permitem que você veja com quem está conversando e seja vista ao mesmo tempo, além de um microfone. Vê-lo e poder ouvir sua voz várias vezes — por telefone procurávamos não demorar muito, pelo custo da ligação interurbana — somente aumentou a imensa paixão que já sentia, e ele por mim, tenho certeza. Na verdade, confesso que certeza, mesmo, dos seus sentimentos e intenções só vim ter há pouco tempo, já perto de concordar que viesse encontrar-me. Quanta desconfiança, meu Deus... Quanta perda de tempo... No fundo já acreditava desde o início, mas relutava, certa de que, assim agindo, estaria sendo esperta, madura e acertadamente cautelosa. Que nada! Estava era deixando de viver. A vida me apresentara o amor, a paixão e o prazer desses sentimentos — que pra mim devem ser um só — e eu não aproveitara como deveria. Por medo. Um medo tolo e injustificado. Neurótico, até. E o tempo não espera, cara Heloísa. Decerto porque você bem sabe disto, cuidou de aproveitar o amor melhor do que eu.

— Não se cobre tanto. Você fez o que achou melhor à época, o que conseguiu, o que pensava ser o correto. Não se culpe — tentou amenizar sua dor.

— Como dizia, ficávamos horas a namorar pela internet. Carlos passou a pedir para que nos encontrássemos, dizia querer ver-me, abraçar-me, sentir o frescor da minha pele, meu cheiro, passar a mão em meus cabelos, apertar-me, beijar-me longamente a boca, amar-me como se amam duas pessoas enamoradas. Medrosa, resisti. Dizia-lhe que não nos encontraríamos antes de um ano, tempo que julgava suficiente para constatar se o que dizia sentir por mim e o que dizia de si seria verdade. Assim se passaram os meses, até que se aproximou o natal do ano passado. A única filha dele, do primeiro casamento, viria ter com ele até o ano-novo. Desejava muito que a conhecesse e ela a mim. Pediu, implorou, insistiu. Argumentava que a vida não pára, que o tempo passa e não perdoa os que desprezam as oportunidades. Alertava que Deus estava sendo muito bom conosco, apresentando-nos e ao amor. Lembrava que não éramos mais tão jovens. Repetia sempre: o tempo passa Marina, e não volta atrás. Medrosa, continuei resistindo. Quase brigamos seriamente dessa vez. Afinal, iria completar um ano pouco depois do ano-novo. Antes, somente uns raros desentendimentos, que qualquer casal tem. Senti que à irresignação de Carlos seguiu-se uma tristeza muito grande. Ele realmente desejava encontrar-me mais do que qualquer outra coisa na vida. Mas, por força do amor que sentia, aceitou. Respirei aliviada. Eu o amava. Nunca sentira algo nem levemente parecido com aquilo.

— E a filha dele? Conversou com ela sobre isto?

— Sim. Posso dizer que simpatizamos muito uma com a outra. Expliquei-lhe os meus motivos. Ela tentava entender. Parecia que via além dos olhos de Carlos. Ou sentia mais fundo do que o seu coração de homem apaixonado conseguia. Percebia que o medo era mais forte que eu. E embora racionalmente não concordasse comigo, essa circunstância, por alguma razão, a fez gostar ainda mais de mim. Uma vez me disse que a seriedade com que eu tratava o amor que sentia por seu pai a fez admirar-me muito além do que já o sentia pelo que conhecia de suas conversas com ele. Foi então, minha amiga, que aproximou-se o mês do meu aniversário e Carlos voltou a pedir para que não abreviássemos novamente o nosso encontro. O interessante é que, agora, eu mesma, antes mesmo dele comentar, já assim o desejava. Estava certa de que queria vê-lo, convicta de que não havia mais o que temer. Eu o amava. Ele me amava. E seríamos felizes para sempre, como num conto de fadas. Não deixei sequer que completasse o pedido. Disse-lhe que fizesse as malas, comprasse a passagem e viesse ao meu encontro. A partir daí vivemos uma semana de expectativa e ansiedade imensas. Fizemos mil planos de como seriam os dias na minha cidade. Ele conseguira alguns dias de folga. A passagem fora comprada. Sairia de Belo Horizonte, pela manhã. Eu iria pegá-lo no aeroporto àquela hora em que nos vimos e nos conhecemos. A única nota dissonante é que sua filha não poderia vir, mas, por outro lado, teríamos esses dias só para nós. Despedimo-nos à véspera da viagem, à noite. Foi a última vez que o vi, pela minha câmera querida. Parecia mais bonito, tanta a felicidade que seu rosto, sua voz, seu olhar expressavam. Desligamos e fomos dormir. Quero dizer, tentar, porque na verdade mal preguei o olho aquela noite. Levantei logo cedo, fui resolver os últimos detalhes de minha vida profissional, voltei, preparei-me para encontrá-lo e fui ao aeroporto. Mas havia algo que me deixava angustiada, uma sensação estranha e desconfortável naquela manhã. É que não conseguira falar com Carlos antes da viagem. Seu celular estava desligado quando lhe telefonei cerca de duas horas antes do vôo. Em sua casa, ninguém atendia. Ele, naturalmente, não viajaria sem me ter telefonado. Isto me deixou apreensiva. O resto, no aeroporto, você já sabe.

Heloísa não conseguia dizer uma palavra. Só ouvia, atentamente.

— Depois que voltei do aeroporto, passei a ligar repetidas vezes para o celular e para a casa dele. Passava mil coisas pela minha cabeça, até mesmo que ele desistira de mim. Finalmente, depois de algumas horas de tentativas infrutíferas, sua irmã atendeu do outro lado da linha. Parecia estar sob o efeito de alguma droga, já que sua voz estava mais lenta e embargada do que o habitual.

— Clarice, onde está o Carlos? O que houve? Desde ontem à noite que não falo com ele. Não embarcou. O celular está desligado. Pelo amor de Deus!, diga que está tudo bem.

— Não está, Marina. Na verdade, não está.

— Mas então diga-me, por favor! O que aconteceu? Onde está Carlos?

— Há alguém aí com você?

— Só a minha empregada. Mas pode falar — disse Marina.

Clarice não teve condições físicas ou psicológicas de esconder-lhe o que aconteceu. Não conseguiu resistir. Por outra, achou que Marina não podia esperar mais. Contou.

— Carlos acordou feliz naquela manhã. Feliz como há muito tempo não via meu irmão. Pulou da cama logo cedo, foi à sala, encontrou-me já acordada, abraçou-me longamente, brincou comigo, disse ser o homem mais feliz do mundo e avisou-me que ia tomar banho e aprontar-se porque a última coisa que faria seria perder o vôo para Maceió, o vôo que o levaria à sua Marina. Dizia isto quase gritando. Passados alguns minutos, ouvi o barulho do chuveiro. Carlos cantava. Não me lembro o dia em que o ouvi cantando enquanto tomava banho. Fiquei feliz por ele. Parecia um menino, e já era um respeitável senhor de quase 60 anos. Realmente, o amor não tinha idade. Sempre haveria tempo para amar. Fui verificar a roupa de Carlos e sua mala. Ver se não estaria esquecendo alguma coisa. Percebi quando o chuveiro foi fechado. Depois de algum tempo, o barulho de água escorrendo, agora a que saía da torneira, aberta, da pia.

— Carlos, está levando a máquina de filmar e o carregador de celular?

— Sim, Clarice! Tá tudo aí.

Silêncio. Somente interrompido pelo barulho da água escorrendo pelo ralo. Ora fechava a torneira, ora a abria. Imaginou: está “fazendo a barba”. Acho que nunca a fez com tanto esmero como agora, pensou Clarice, sorrindo para si. De repente, um baque surdo.

— Carlos! Carlos! O que foi isso? Está tudo bem?

Nenhuma resposta.

— Carlos! O que aconteceu? Que barulho foi esse? Responda, por favor!

Só o silêncio e o barulho da água denunciando que a torneira continuava aberta. Apavorou-se. Batia à porta, começando a desesperar-se e gritando seu nome. Carlos não respondia. Só conseguia ouvir a água escorrendo, uniforme. Tentou girar a maçaneta da porta. Constatou que não estava fechada à chave. Abriu. Carlos estava estirado no chão do banheiro, imóvel. Parecia desmaiado. Conseguiu constatar que respirava, mas era quase imperceptível. Correu a pedir socorro na vizinhança. Chamou a ambulância, que por sorte ficava há apenas um quarteirão dali. Em poucos minutos estavam a caminho do hospital. Clarice seguiu em seu próprio carro.

Chegando ao hospital, Carlos foi encaminhado direto à UTI. Permanecia desacordado. Sucederam-se alguns intermináveis minutos. Como o tempo demora a passar quando se deseja o contrário, pensou Clarice. Vem o médico.

— Algum parente do Sr. Carlos Santiago?

— Sim, doutor. Sou irmã dele.

— Lamento, senhora...

— O que houve? Pelo amor de Deus! Diga-me que meu irmão está bem! — interrompeu.

— Sinto muito... Ele não resistiu ao infarto. Faleceu minutos após chegar aqui. Adotamos todos os procedimentos com vistas a reanimá-lo, mas não adiantou.... Até houve um momento em que as técnicas empregadas surtiram efeito, mas apenas por alguns poucos segundos, infelizmente. O estranho, porém, e ao mesmo tempo surpreendente, perdoe-me dizê-lo agora, é que naquele momento em que conseguimos reanimá-lo, ele falou, fraca, mas claramente: “O tempo passa. O tempo não espera. O tempo é implacável.” E morreu.

Heloísa estava ansiosa para encontrar João. Via-se atordoada com tudo o que ouvira e presenciara nas últimas horas. O aeroporto, as novas amigas, a surpreendente coincidência que as uniu. Marina. Sua história. A mais linda e triste história de amor que ouvira e, em parte, até testemunhara. Desejava, como nunca, viver a felicidade que inesperada e paradoxalmente invadia-lhe o corpo e a alma. Sentiu seu coração bater mais forte. Sabia que sua vida nunca mais seria a mesma após Marina e Carlos. Desligou o ar-condicionado do carro. Havia parado de chover. Abriu os vidros. Queria sentir a brisa em seu rosto. O sol começava a encher de cor aquele final de manhã. Pegou a avenida da praia. Olhou para as pessoas, o mar, os coqueiros. Agradeceu a Deus por sua vida. Agradeceu pelo tempo que desfrutara. Sentia uma incontrolável vontade e disposição de viver. Viver mais e intensamente. “O tempo passa. O tempo não espera. O tempo é implacável...”, pensou.

Quase dois meses se passaram. Nunca mais tivera contato com Marina. Soube que ela teve alta no dia seguinte e viajara em seguida, para ver parentes no sul do país. Ligou para o seu celular. Uma, duas vezes. Aparentemente desligado. Para sua casa. Ninguém atendia. Desistiu. Desejou-lhe sorte, em pensamento. As outras amigas, inclusive Simone, vez por outra as encontrava pela internet, em alguns momentos em que estava “teclando” com João. E só.

Chegou muito cedo no consultório àquela manhã. Sentia-se alegre e com uma energia imensa. Uma nova cliente marcara, com sua secretária, excepcionalmente para aquele horário. Concordou em atender porque viera indicada por uma grande amiga de sua mãe. Teria sofrido um trauma intenso. Mais, não soube. Duas leves batidas na bela porta de madeira maciça, onde presa a placa anunciando “Heloísa de Souza Marques – Psicóloga”, interrompe seus pensamentos. Abre-a. Quase caem, ambas, para trás. É Marina.

É verdade, filosofou Heloísa, para si... O tempo passa. Não espera. É até implacável. Mas sempre há tempo para ao menos se aprender com o tempo que passou. Abraçam-se.

2 comentários:

Joyce disse...

É delicioso ler o que você escreve... Fico viajando nos seus dizeres... em cada minúciazinha. Continue assim muito inspirado... Seus leitores agradecem.

Beijo :)

André Falcão de Melo disse...

Que bom saber que você leu esse conto! Gosto muito dele, ainda. rs Beijo, Joycinha! Brigado!