quinta-feira, 15 de novembro de 2007

Assédio

Conto
Em saia justa. Melhor: calça. Mais apropriado. Me vi assim. Meados dos anos 90. Um pouco mais cedo, o prelúdio de minha advocacia na empresa em que trabalho até hoje. Para ficar na remissão às peças do vestuário, diria de mim, quando tudo começou, como ainda de calças. Senão curtas, no meio das canelas. O responsável pelo ajuste desmesurado daquela peça de roupa ao meu corpo era, então, alta autoridade em município do interior do nordeste. Gerente de banco oficial, em pleno século XXI, ainda é uma “autoridade” numa cidade pequena do interior do nordeste brasileiro, o que dizer de um Juiz de Direito. Era a profissão do sujeito. A fama lhe era desfavorável. Corrida à boca miúda. O que eu sabia, por ouvir dizer, é que não era muito afeito às práticas ombreadas com a honestidade.

Conheci o naquelas plagas. Precisava, então, impulsionar o andamento de um processo que por lá tramitava, mas que decerto estava esquecido, como tantos outros assim permanecem, dormindo nas gavetas empoeiradas de cartórios por este país. Certamente, não fosse tomada a iniciativa de pedir-se ao magistrado para dar prosseguimento ao feito, decerto do sono os autos não acordariam. Assim, lá fui, ansioso para provar ao meu chefe, aos colegas mais velhos e, principalmente, a mim mesmo, que era capaz de consegui-lo, apesar da pouca experiência e da cara ainda imberbe. Mas estava inseguro. Tanto porque teria que pedir ao magistrado que realizasse o trabalho para o qual é pago pelo erário — inaceitável, mas comum —, como em face da já referida má-fama do dito cujo.

Cheguei à cidadezinha e logo me dirigi ao cartório. Estava puto da vida comigo, porque me percebi preocupado e receoso. Perdoe-me a expressão chula, complacente leitor, mas era assim que me sentia, muito desapontado mesmo. Havia um único serventuário na mal cuidada sala. Pedi-lhe os autos para exame, após identificar-me, orgulhoso, como advogado. O mandado expedido pelo juiz naquela Carta Precatória, destinado à citação do devedor da minha empresa, estava há meses com o Oficial de Justiça encarregado de cumpri-lo. Surpreendeu-me mais ainda, porém, o equívoco no rito processual adotado pelo magistrado, o que recomendava um rápido, digamos, colóquio com a referida autoridade, com vistas à correção do inusitado erro. O problema era fazê-lo sem lhe ferir as suscetibilidades. Os advogados chamam essa conversa de “embargo auricular”, ou “embargo de orelha”, figura evidentemente inexistente nos compêndios acadêmicos. Servia para deduzir algum pedido sem a necessidade de sua formalização em petição escrita. Pedi pra me anunciar ao juiz. Não mais que um minuto depois retorna o escrivão (era escrivão, o servidor). Abre a porta do gabinete do magistrado e me convida a entrar.

— Como vai, Excelência? — cumprimentei a fera, tentando aparentar naturalidade e experiência.

— Tudo bem, doutor! Em que posso servi-lo?

Beleza! Então o sujeito não era tão mau como imaginei...

— Excelência, na verdade não pretendo tomar muito do seu tempo. É simples o que vim solicitar.

— Percebo que o senhor ainda é muito jovem... Tenho um filho que está cursando Direito. Creio que se formará dentro de dois anos — disse-me o juiz, com uma simpatia que, entretanto, não me convencia.

— É verdade. Comecei a advogar há menos de um ano. Peço para me perdoar se a minha inexperiência propiciar algum transtorno maior.

— Não se preocupe, doutor. Todos nós já fomos inexperientes um dia, não é? — repetiu o velho chavão. Mas, pelo menos, grosseiro não foi.

Continuamos a conversar um pouco sobre amenidades. Resolvi era chegada a hora de abordar os fatos.

— Bem, excelência, sem querer tomar mais do seu tempo, vim aqui para verificar o que podemos fazer para agilizar o andamento deste processo. Verifiquei que Vossa Excelência já determinou a citação do devedor, restando apenas que seja cumprida pelo meirinho. Observei, também — disse, com cuidado e devagar, tentando diminuir a gravidade do equívoco —, que há um engano no rito procedimental imprimido à Carta Precatória, já que não se cuida de execução fiscal, mas execução hipotecária...

— Ah, é? Deixe ver. Tem razão. Vou determinar a retificação, bem como que o Oficial devolva o mandado aos autos, devidamente cumprido, em 48 horas. Está bom para o senhor?

Ufa! Inacreditável! Missão cumprida. Agora, de volta para Maceió. E não me saí mal, afinal.

Desde então, anos se passaram e raríssimas vezes o encontrei, ocasiões em que me limitava a cumprimentá-lo, não havendo jeito de passar desapercebido. Sua fama de desonesto já se alastrava por toda a região. Daí a principal razão, certamente, a me empurrar para longe da criatura. Ou simplesmente era intuição.

Um dia, almoçava, toca o telefone. Não sei porque, senti algo estranho. Juro! Um pressentimento ruim. Atendi. Era ele. Esfriei. Que diabos queria comigo? Nunca antes telefonou pra mim. Aliás, como descobriu o número do meu telefone? Explicou que queria contratar meus serviços advocatícios, só que deveria ser realizado em outra cidade. Gelei. Por que eu? Senti, intuitivamente, que deveria declinar do convite, escapar de suas mal-cheirosas garras. Mas como fazer isto sem parecer indelicado ou, pior, sem ter de lhe passar uma descompostura? Precisava ganhar tempo enquanto pensava numa saída.

— Sei... mas... do que se trata? — perguntei, investigando e, ao mesmo tempo, fingindo interesse.

— Prefiro acertar os detalhes pessoalmente. Podemos nos encontrar?

— Ca... ca... claro... Mas para quando seria o serviço? — balbuciei, rogando ao Senhor uma luz.

— Para a próxima sexta-feira. Um carro com motorista poderá levar o doutor e trazê-lo de volta.

Foi a deixa que eu precisava. Obrigado, Deus! Numa vomitada só, disse-lhe:

— Oh, Excelência, lamento! Infelizmente, nesse dia estarei em Salvador, pra receber um parente que retorna de viagem. Lamento, mas terei que declinar do convite.

— Humm... Tudo bem, então, doutor — disse-me, levemente desconfiado. Ou foi imaginação minha?

Alívio. Senti um desafogo imenso. E nem sabia do que se tratava. Mas desconfiei não seria algo muito, deixe-me ver... ortodoxo. É que de um lado, a fama, má; de outro, um pressentimento ruim. Seria este influência daquela? Sei lá. Via das dúvidas, fiquei com a sensação de que pulei uma fogueira.

O fato é que mais uma vez me admoestara. Mais uma vez, porém, felizmente, saí incólume. Incomodara-me, de qualquer sorte, ter-se sentido à vontade para me procurar. O assédio, porém, não cessaria aí.

Passaram-se alguns meses e eis que o encontrei novamente, agora num evento sócio-político, bastante informal e interativo, onde nos cumprimentamos rapidamente. Tudo estava bem, até que chegada a hora do primeiro intervalo, quando seria oferecido um lanche pela empresa organizadora.

— Doutor, como vai? Tenho um processo, contra uma empresa para a qual o senhor presta seus serviços advocatícios, que deve estar retornando do Tribunal e sobre o qual gostaria de lhe falar. Segundo a publicação oficial, o senhor seria o advogado responsável pelo acompanhamento do feito.

Engoli em seco. De novo, não!

— É...? Sobre o quê... o processo...? — escapa, rapaz, escapa!, pensei.

Esclareceu-me.

Novo alívio.

— Não sou eu, doutor. Esse processo é acompanhado por outro colega. É que a empresa dispõe de advogados diversos a defendê-la, conforme o assunto discutido em juízo. Apenas a procuração é uma só, com todos os nossos nomes. Lamento.

Mais uma vez a admoestação, pensei. Mais uma vez não sabia o que pretendia, mas intuitivamente desconfiava. Mais uma vez tive que buscar uma saída liminar — para ficar no jargão jurídico. E era verdade. Não era eu o advogado responsável pela condução daquele processo. Despedi-me. Precisava pôr um fim nisso! Conseguira evitar indispor-me com o dito cujo, ou mesmo demonstrar-lhe vigorosamente minha irresignação, caso se cuidasse de pleito indecoroso. Lograra até mesmo evitar ir às vias de fato, a depender do que me pedisse. Mas o cara não largava do meu pé! Praga!

Nesse ínterim, os organizadores pediram a alguns participantes para discorrerem sobre algum tema, previamente sorteado. A mim me coube falar sobre educação. Não queria. Porém, algo me compelira a aceitar a incumbência. Algo mais do que apenas gentileza com os solicitantes.

Pus-me a pensar em como abordaria o assunto. Mas não me saía da cabeça, também, a necessidade, premente, de resolver definitivamente aquele problema. Isolei-me. Buscava concentrar-me no meio àquele burburinho. Os dois fatos a me martelar a cabeça. Pensei, pensei... Idéia! Claro! A solução estaria no próprio discurso.Teria de ser singelo, como a natureza do evento reclamava, e evidentemente ligado ao tema, tal como me foi atribuído, mas também deveria ser objetivo quanto ao recado — que precisava indiretamente transmitir-lhe — de que seria uma péssima idéia propor-me algo desonesto.

É fato, reconheço, que sequer pude constatar se eram irregulares as pretensões que o fizeram assediar-me. Afinal, delas me desvencilhei até antes de serem deduzidas, por cautela ditada por minha intuição. Mas não me arrependia. Antes, ao contrário, agora sentia a necessidade de pôr um obstáculo definitivo a qualquer outra nova investida que viesse a dirigir contra mim. Nutria, para isto, a íntima expectativa de que o “aviso” fosse captado e que me deixasse em paz de uma vez por todas. Se ele, por si só, não se apercebera da minha honestidade, eu a mostraria, então.

Voltamos à sala de trabalhos. Avisam-me, meu discurso, por enquanto preparado apenas em minha mente, seria o último. Melhor. Assim, poderia aprimorá-lo, improvisado que seria, alinhavando as idéias principais em tópicos para não me perder. Em verdade, todavia, só pensava em como nele encaixar a parte direcionada ao meu algoz. Deveria ser simples e direta, mas de modo que só ele pudesse saber-se dela destinatário. Aquilo poderia significar o fim daquele tormento. Engraçado, pensei novamente, eu sequer sei o que queria, nas vezes em que me procurou, e já tanto me incomodara. Imagino-me se soubesse...

Chegou a minha vez. Pedi ajuda divina. E fui. Normalmente tenso em situações assim, dessa vez estava até eufórico para começar.

Iniciei desenvolvendo os tópicos que alinhavei, no intervalo e durante parte dos discursos que me antecederam, sobre a importância da educação para o desenvolvimento de uma sociedade, o quanto nosso País se ressentia de sua falta, e como é imprescindível à formação de verdadeiros cidadãos. Depois, parti para a defesa da tese de que o alcance desses objetivos imprescindiria do rompimento com paradigmas arcaicos incrustados na própria ordem vigente, o que somente se daria em outro ambiente: um ambiente de desordem criativa, de revolução. Uma revolução na educação! Portanto, grandes avanços, grandes mudanças, grandes progressos, talvez não se coadunassem — ao menos não em muitos casos — com a ordem já estabelecida. Ordem para o progresso? Ordem ao lado do progresso? Ordem condição para o progresso? Assim não me afigurava. Teríamos que mudar nossa bandeira. Ao menos em nossa alma.

Fechava o silogismo, então, asseverando que a ordem não permitia a criatividade, antes a engessava, donde com ela contraditória e obstáculo ao progresso. A desordem, assim, seria um ambiente a ele mais propício e, portanto, à disseminação de uma melhor educação. Em circunstâncias que tais, os avanços viriam. Os processos revolucionários são prenhes deles.

Preparava, porém, ao mesmo tempo e finalmente, o terreno para o fecho do discurso, seu clímax, que se traduziria, também, no próprio recado à malfadada autoridade.

— Penso, assim, amigos, que a educação neste país necessita de um movimento verdadeiramente revolucionário, de rompimento com os paradigmas postos pela ordem vigente e passivamente aceitos há décadas. Entretanto, o que me causa estupor e indignação é que a revolução que apregôo há de se dar, antes, para incutir, ou restabelecer, nas pessoas a assimilação de um valor que, entretanto, é básico, e cujo ensino, outrossim, não deveria ser mais necessário difundir. Antes já deveria estar enraizado em cada cidadão, nessa e em outras ordens que se lhe seguissem.

Tomei um gole d’água, respirei fundo e continuei.

— É verdade. E é uma lástima não esteja. A revolução na educação há de ser promovida, sim. Mas, primeiramente, para disseminar um valor esquecido entre nós. Pasmem! Refiro-me à honestidade! Sim! Infelizmente, haveremos de começar tudo de novo. Pelo bê-a-bá, mesmo! Ensinar que o bom é ser honesto. E não o contrário. Que é errado roubar, enganar, corromper, desprezar, humilhar, apropriar-se do que é dos outros ou do bem comum, e etc. Inclusive o etc.

Nova parada. Não parava de sentir a boca seca. Quis tomar outro gole, mas não me senti à vontade para fazê-lo, já que há pouco o fizera. Achei que chegara a hora. Ele já deveria estar vestindo a carapuça, estivesse eu sendo claro. Concluí.

— Aprendi, com meus pais — tantos de vocês devem tê-lo, também —, que o maior prazer que se pode desfrutar nessa vida é o de poder deitar a cabeça no travesseiro, à noite, e fazê-lo com a consciência tranqüila, sem peso extra. Dormir tranqüilo, dizia-me ele, era o maior bem da vida, porque significava que estávamos sendo bons, corretos, cumprindo os nossos deveres e respeitando nossos semelhantes. Pena constatar, contudo, que os desonestos, neste País, estão dormindo muito melhor do que nós. Muito obrigado.

Aplausos se seguiram. Mal os ouvia. Em mim mesmo, só a expectativa de que o meu “recado” houvesse alcançado a consciência do sujeito, ou, faltando-lhe ela, o que existisse em seu lugar. Vácuo o fosse. Mas que o houvesse recebido e entendido-se dele destinatário.

Deram-se por encerrados os trabalhos; liberados os comes e bebes. Como outros colegas, que efusivamente vieram regozijar-se com minhas palavras de há pouco, também ele veio me cumprimentar. Porém, notei o constrangimento em sua voz, em sua fronte, em seu olhar. Mal me fitava.

— Hummm... Olha só... Que discurso, doutor. Parabéns — disse, oferecendo-me a mão, com um sorriso amarelo a moldar, e escancarar, o nítido desconforto que sua face espelhava.

— Obrigado — respondi, disfarçando minha satisfação e o velado propósito de tudo aquilo. Retribuí o cumprimento.

Rapidamente se distanciou. A distância, agora, era querida por ambos. Houvera me cumprimentado, para tentar disfarçar o mal-estar e a carapuça que o sufocava. Eu, fingindo-me de morto, constatei que estava finalmente livre. Logo me vira rodeado de colegas novamente, leve e satisfeito por haver-me posto a salvo.

— Hummm... Que salgados gostosos! Que ar puro! Tem mais uma cervejinha, aí?

Nenhum comentário: