quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

O ano de 2016 (para mim)*



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Tenho alguma dificuldade para achar 2016 um ano muito ruim. Claro que para o país foi terrível. Política e economicamente desastroso, embora a economia tenha assim sido em boa parte pela instabilidade política adrede preparada e levada a cabo pelos opositores ao governo deposto: mídia hegemônica partidária, parcela do judiciário e de membros do ministério público e da polícia federal, capital financeiro e industrial interno e externo, governos estrangeiros — EUA à frente —, políticos corruptos e descontentes, “legitimados” pelo apoio nas ruas de uma classe média em grande parte manipulada pela mesma mídia, ou que simplesmente saiu do armário onde se fechara envergonhada desde 1964, para fechar o ciclo. A presidenta legitimamente eleita, digna (e inocente) foi deposta por um golpe midiático-político-jurídico. Ali ficou claro que o Brasil permanecia sendo uma republiqueta de bananas. Todo o respeito internacional se esvaiu. Em nome do combate à corrupção, mas em verdade atendendo a interesses econômicos do capital internacional, uma caça seletiva a políticos e empresários se instalou, destruindo propositadamente nossas principais empresas e promovendo prejuízos irrecuperáveis à economia nacional.


Por outro lado, mas ainda nesse sentido, a morte de figuras exponenciais brasileiras e estrangeiras (Ferreira Gullar, Fidel Castro, Carlos Alberto Torres, Ivo Pitanguy, Guilherme Karan, Hector Babenco, Evaristo de Moraes Filho, Muhammad Ali, Cauby Peixoto, Tereza Rachel, Umberto Eco, David Bowie, Gustavo Bueno Martinez, entre tantos outros), as mortes de milhares de inocentes na guerra da Síria e em outras instaladas em centros de interesse do capital, apoiadas, quando não patrocinadas ou deflagradas pelo império estadunidense e seus companheiros na Europa, além dos atos de revanche praticados contra inocentes na Alemanha e na França, para ficar só nesses exemplos, tornaram o país e o mundo mais pobres, perigosos, intolerantes, fascistas, racistas, xenofóbicos e misóginos. O ódio está em cada esquina, às vezes dentro da própria casa do indivíduo.


Pessoalmente, sob o aspecto particular, mesmo, o ano de 2016 foi ruim principalmente porque a minha mãe sofreu um AVC, felizmente não hemorrágico. É um quadro horrível e imensamente triste de se ver. Naquele momento eu tive medo, muito medo, um medo espetacular de que ela viesse a falecer ou que a doença provocasse sequelas que a fizessem sofrer. Felizmente, estas, evidentes e lastimáveis, não promoveram a destruição e sofrimento temidos. Sim, a minha mãe tão querida hoje está numa cama em seu quarto — reformado, meio como quarto de hospital, para aguardá-la nessa nova fase de sua vida —, e assim deverá permanecer pelo tempo (longo, por suposto) que vier a ficar conosco, necessitando de ajuda de terceiros para realizar as mais triviais e básicas funções, negando-se até a sentar na cadeira de rodas. “É ruim, André”, diz. E não é uma cadeira ruim.



Noite de Ano Novo (2016/2017)
Mas apesar disto, fico contente em vê-la brincar com suas cuidadoras, enfermeiras e familiares. Fico contente em observar suas traquinagens, típicas de uma criança que nela resolveu se reinstalar, para mim desígnio de uma força superior e boa — a que chamo Deus —, decerto para involuntariamente propiciar-lhe fugir da consciência exclusivamente adulta de seu estado. Fico contente em vê-la implicando travessa com a fralda, para fazer-lhe um furo com a mão e braço sãos, onde se diverte retirando o algodão que a reveste e, incontinenti, jogando os fechos no chão. E me encho de ternura ao vê-la cuidar de seu bracinho esquerdo doente, como docemente a ele se refere. Só recentemente me perguntou se havia sofrido um AVC. Dias antes havia feito a mesma pergunta ao seu médico, que lhe confirmou citando o nome por extenso (acidente vascular cerebral etc., etc.), para tentar amenizar um eventual e possível choque (ao contrário do câncer, cujo alívio psicológico era chamá-lo “CA”, no caso do AVC o mais traumático é falar as letras). Àquela pergunta, de supetão, tomei um susto, mas segurei a onda e respondi-lhe que sim, felizmente dos mais fracos (não foi assim, fraco, mas não foi dos piores, dizem-me). Para ficar boa, deveria se dedicar à fisioterapia, tentativa inútil. Ela ouviu e logo mudou de assunto. Faz quase sempre na marra.


Hoje, nada me deixa mais feliz do que encontrar seus olhos cheios de amor, inundando-me de amor, também; de enchê-la de beijos e abraços, como se estivesse matando uma sede que jamais será satisfeita. “Tá bom, menino!” — diz, sorrindo gostosamente, enquanto tenta afastar o peso de meu rosto sobre seu peito, já começando a incomodá-la. Brincadeiras, cócegas em seu pezinho são e no doente (que responde ao estímulo), gargalhadas, e amor, muito amor. São assim os nossos encontros. Não sei quem sai mais nutrido, se ela ou eu.


Por isto a minha dificuldade de falar mal de 2016. Melhor dizer que foi um ano desastroso para o país e para o mundo. Mas que no meu mundo mais íntimo, neste que só eu posso sentir e avaliar, 2016 foi muito bom. Porque não levou embora a minha mãe.
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*Como é um texto de tema híbrido, meio sobre "a minha mãe", meio sobre política, resolvi postá-lo também no meu blog exclusivo sobre este tema (Ponto Vermelho)

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