segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

Abacate

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A consciência da finitude. Os questionamentos que renitiam em invadir-lhe a mente e a alma. Alma? Para que, afinal, a vida? Por que encontrar a felicidade, justo aí? Seu pai nunca mais veria.  Seu cachorro fora-se há tanto tempo, mal era recordado. Seus avós, já não os tinha tampouco. Receberam o amor que mereciam? Um dia, todos os que amava, mal ou bem, também se iriam. Ele também. Por que voltara a fumar, se queria retardar? Gostava. Tá. Achava a vida sem vício algum uma chatice. Mas não era uma contradição? Era. Talvez. Queria fazer tanta coisa, ainda.
Provavelmente não era pra pisar o chão, ainda úmido pelo pano molhado que acabara de ser passado. Mas ele pisou. E amanhã o pano teria que ser usado novamente. Independentemente de suas pisadas. A poeira também fazia parte da vida. E o gesto de tirá-la. Repetido por toda ela. Queria significar que a vida, tal como pensamos conhecer, não para? A poeira só se mantém quando a vida acabou... Esteja você morto, ou vivo.
As folhas e galhos mais finos pareciam dançar ao som de Que Reste-t-il De Nos Amours.... Sentia seu coração também batendo sob o compasso da melodia. Que venham a poeira e os panos molhados... Non, Je Ne Regrette Rien. Sim! elas ouviam! Seu balé era mais lento, agora. No compasso perfeito. Alguns galhos mal se mexiam. O casal que passava ouviu e olhou. Dancem, dancem, aproveitem!, pensou. Foram-se. Talvez não tenham tido coragem. É preciso coragem para ser feliz. Milord! Lindo! Recomeçaram a bailar freneticamente. E à primeira pausa também pararam. E depois continuaram bem devagar. Viva! Voltaram a mexer-se no compasso seguinte. É... as plantas ouvem e sentem. Como ele. Seria possível a melancolia e a felicidade coexistirem? Duas crianças chispam pelo jardim. A mais velha pega a outra nos braços. Parecem esvoaçar num largo salão de alfombra verde, bracinhos abertos redopiando em torno do velho pé de caju doente. Seus galhos magros e descabelados, por sua vez, embora esgotados, parecem sorrir agradecidos enquanto se deixam, sem resistência, assenhorear-se pela toada e seus novos pares.

O som da Moka anunciando que o café estava pronto tirou-o de seus devaneios. Deu-se conta de que o cheiro já havia inundado a pequena casa, e ele, apesar de senti-lo já há algum tempo, não uniu uma coisa à outra. Abraçou-a apaixonadamente por trás, beijando-lhe o pescoço e agradecendo intimamente por estar ao seu lado. Feliz como nunca se sentiu. Ao menos não tão completamente e por tanto tempo.
“Venha, tá como você gosta, a última colherada, deu na conta.” “Jura? Vixe! Que pena. Teremos que voltar antes do previsto”, provocou-a. Tinham uma paixão especial pela ilha. Não seria diferente com o café de lá. Era um sonho acalentado desde que Fidel resolvera abri-la para o turismo, espremido pelo fim da União Soviética. Nos últimos cinco anos foi destino certo, sempre aos fevereiros, exceto em 1999, quando viraram o século no Malecon. A melancolia se dissipara. Mas ela havia se tornado recidivante.
Sorveu o último gole e voltou para o ultrapassado Pentium 4. À sua frente, a página em branco, como a dizer para desistir. Perdeu a conta de quantos começos. Mas eles estavam lá, arquivados, para quem sabe um dia... Ou para contar o tamanho de seu fracasso. Recordava o tempo, inegociável. Em poucos meses completaria cinquenta anos. Do primeiro e único livro, uma coletânea de crônicas, já distavam mais de dez. Voaram. Outros dez passariam ainda mais rápido. Aí já teria sessenta! As dezenas de moleskines, prenhes de anotações, dispostas desajeitadamente numa cesta ao lado esquerdo do computador; companheiras fiéis, mas inúteis. Faltavam-lhe as palavras, há tempos mais raras do que água pro sertanejo. Da trama, a única familiar era a da toalha da mesa. E prometia a si mesmo que se não ganhasse o primeiro prêmio iria desistir, como se seu objetivo não fosse essencialmente o de voltar a escrever. Aquela indescritível sensação quando datilografara o ponto final na agora aposentada Remington. Precisava disso de novo. Cansado de sobreviver com os trocados pelas crônicas diárias para alguns pequenos jornais. Na sua idade, poucos haviam alcançado o sucesso que lhes permitira viver da literatura. Saramago. Mas comparar-se com Saramago...
Lembrou do homem das castanhas de caju. E das mulheres vendendo frutas. Todos disputando os potenciais clientes em seus carros com arcondicionado e vidros fumê fechados. Como ele, com suas histórias e pensamentos, aguardando impacientes a permissão do sinal.
“Oi, o caju tá doce?” “Tá, sim, freguês.” “Vê uma bandeja.” “Duas sai por cinco.” “Não, são só duas bocas, dão conta, não, apodrecem antes”, disse-lhe, sorrindo. Ela sorriu de volta e trouxe a bandeja. “Espere, vou levar também uma de pinha e três abacates.” Apressou-se em buscar, satisfeita. A luz verde acendeu. “Moça, espere: parar mais na frente.” Subiu as duas rodas na calçada. Os carros que vinham atrás fizeram breve manobra e passaram apressados. Pegou as frutas, pagou, e ficou aguardando o troco. “Brigado.” “Brigada.”
Não apreciava abacate, mas ela gostava de fazer abacatada; deliciava-se já desde o preparo, e ficava esperando a hora de olhar enamorado para seus olhos sorrindo e sua boca com aquele imenso bigode verde. Fazia questão de limpá-los com a sua, e essas eram as únicas vezes em que se permitia sentir o gosto da esverdeada fruta. Gostava de chegar a casa com algo de que ela gostasse. Aprendeu que para amar não havia segredo. E se havia, era a comunhão. Comunhão poderia ter vários nomes, inclusive abacate.
Sem se dar conta, permaneceu um tempo por ali. A garota vestia um short surrado, camiseta desbotada que deixava aparecer as alças do sutiã bastante gastas e um pedaço da barriga meio flácida de quem já pariu, sandálias de dedo comidas dos lados, cabelo crespo preso com um elástico sobre a nuca, pele manchada e maltratada, porém com um rosto bem afeiçoado e olhos claros e vivazes. Fazia parte de outro tipo de gente. Uma gente que iria passar pela vida sem ter as mesmas oportunidades de outras garotas que conhecia; ou de suas filhas.
Sabia que tinha tantas histórias pra contar, então por que não conseguia?
“Não quero almoçar agora, amor. Abre um vinho! Toma uma taça?” Acendeu um cigarro, tragou demoradamente e deu um gole logo após expirar a fumaça. Ela se serviu, também. Sentou-se ao seu lado, não tão longe, que o deixasse sozinho, nem tão perto, que o distraísse. Estavam juntos há pouco mais de uma década. Raras vezes discutiam. Não tinham filhos em comum. Nem sentiam essa necessidade. Os de cada um já eram amados, adultos e com vidas profissionais e amorosas construídas, ou em vias de. Pegou um livro e fingia lê-lo, para desobrigá-lo de sentir a necessidade de conversar. Sabia o quanto ele precisava daquele livro.
“Sabe, amor — disse ela, de repente —, a gente não se encontrou tarde. A gente se encontrou no nosso tempo certo.” “Por que tá me dizendo isto?” “Porque uma tarde me vi pensando, quase triste, que nosso tempo poderia ser curto. Sobre finitude, sabe? Mas quando você me trouxe aquele abacate, lembra?, e nem bem tinha começado a época de abacate, engraçado, percebi que eu não tinha o direito de trazer tristeza pra dentro de mim.” Ele sorriu, mirou seus olhos segurando-lhe as mãos, e beijou-lhe os lábios com ternura. Depois, voltou para a tela do computador, e ela para o livro.
Já se iniciara o novo ano e a página ainda lá, em branco. Passados alguns minutos absorvido por aquela lógica tão simples quanto verdadeira, viu-se de repente escrevendo:

A consciência da finitude. Os questionamentos que renitiam em invadir-lhe a mente e a alma. Alma? Para que, afinal, a vida? Por que encontrar a felicidade, justo aí?...

4 comentários:

Diário da Poesia disse...

Belo texto, meu nobre. Autobiográfico? Realmente "é preciso coragem para ser feliz"! 👏👏👏👏👏👏👏👏👏

Heitor Menegale disse...

Descubro um autor de talento que a finitude não alcança. As palavras têm a vida delimitada pelo que trazem. É o segundo conto que leio do André. Certamente muitos ainda lerei, e espero que a finitude me esqueça por um bom tempo, porque letras lançadas com tamanha maestria, jamais desaparecerão, fadadas à infinitude. É um presente que André dá ao universo literário.

André Falcão de Melo disse...

Muito obrigado, amigo! Autobiográfico? Pequenos detalhes, q o amigo, por me conhecer há tanto tempo, conseguiu perceber o cheiro. Abraço!

André Falcão de Melo disse...

Heitor, vc é muito generoso! Mas gostar, sei q gostou, e isto me basta. Forte abraço!